segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Fazer-se um corpo[1]

 Bernard Seynhaeve
                                                                                                                          
            “Tento dizer que a arte está para além do simbólico. A arte é um saber fazer. Creio que há mais verdade no dizer da arte do que em qualquer blábláblá. E não se trata de pré-verbal, mas de um verbal na segunda potência[2]

O corpo é do domínio do ter. Tem-se um corpo, não se é um corpo. Em alguns casos, a percepção do corpo próprio como unidade imaginária separada do universo, separada do outro, não foi conquistada ou foi mal conquistada. A relação com o corpo fica então bizarra, o corpo é percebido como estranho, e até mesmo como estrangeiro. O corpo pode então aparecer como um monte de órgãos, fragmentado, com sensações e percepções desorganizadas e sem unidade[3]. É o corpo sem borda do qual podem testemunhar alguns sujeitos autistas.
Eu guardarei uma lembrança indelével de meu primeiro encontro com essa pequena jovem que eu chamarei de Émile. Ela tinha oito anos quando ela me foi apresentada pelas enfermeiras do hospital dia onde ela devia passar os primeiros anos de socialização. Foi ela que se dirigiu a mim com essa familiaridade suspeita que encontramos, de tempos em tempos, em alguns desses jovens sujeitos ditos “autistas”, me cumprimentando com um “Bom dia!”, como se ela me conhecesse desde sempre.
Espantado com esse ímpeto em minha direção, eu lhe respondi  perguntando como é que ela se chamava.
“Émilie”, ela me diz, “eu sou autista”. Eu lhe perguntei então o que era ser autista! Ela me convidou a me aproximar. Eu abaixei e ela me sussurrou no ouvido: “Eu faço cocô por todos os lugares e”, – associando o gesto à palavra - , “eu o passo por todos os lugares nas paredes”.
s havíamos acolhido essa criança no Courtil, ela ficou por uma dezena de anos em nossa instituição. Essa menina tinha  uma grande dificuldade constituir um eu (moi): um eu, quer dizer, uma imagem de seu corpo. De fato, ela não tinha corpo. Me parece que ela era muito mais um organismo, ou um saco de órgãos: assim teria ela o direito de se interrogar sobre a substância que escapava de seu corpo. Seria uma extremidade dela mesma? Obviamente, não era um dejeto. Ela conservava, portanto, preciosamente, seus excrementos.
Do volume à superfície
Ela devia ter uma imagem bizarra de seu corpo. O que ela via no espelho? De fato, ela não devia ter um eu como você e eu[4]: um eu que se mede tendo como referência uma imagem idealizada que fazemos de modo narcísico.
Émile tinha dificuldade em representar seu corpo. Para constituir a imagem de seu corpo, é preciso passar do volume à superfície: ora, Émilie não conseguia fazer isso espontaneamente. O que ela veio, portanto, fazer em nossa instituição, foi encontrar meios para se fazer um corpo, e realizar isso de uma maneira distinta daquela de um protocolo que teria consistido, por exemplo, em lhe ensinar o asseio, recompensando-a quando ela estivesse limpa. Nunca exigimos dela que cedesse esse objeto anal que ela guardava conscienciosamente. Nós não quisemos praticar esse método educativo, nós escolhemos uma via inteiramente distinta, centrada no objeto. Nós acolhemos seu sintoma.
O começo não foi fácil para o pessoal da instituição. Durante os primeiros meses, nós encontrávamos os excrementos dentro de sacos plásticos que ela estocava debaixo de sua cama.
O que é que aconteceu então para que se produzisse um fenômeno novo?
Talvez alguém tenha colocado tinta e pincéis à sua disposição. Assim, um dia me chamaram para ir ver seu quarto, o que eu nunca faço. Mas a insistência era tal que eu me vi obrigado a ir. Tinham algo para me mostrar.
Entrando no quarto, fiquei estupefato e maravilhado diante de uma formidável realização pictórica. Era incrível. Émilie tinha arrancado, de seu caderno de colorir, a silhueta que se dispõe à direita de seu modelo e que espera ser colorida. Ela tinha colado a página para colorir na parede e se colocou a trabalho. Ela percebeu que o joelho do personagem sentado podia igualmente fazer função de lóbulo da orelha de um outro personagem. Tinha assim deidido pintar esse personagem que era evidentemente muito maior do que a página. Seu trabalho ultrapassava sensivelmente as bordas da folha colada na parede. Resultava disso, segundo esse princípio, um magnífico afresco de personagens emaranhados que recobria uma grande parte das paredes de seu quarto, na sua altura, incluindo a janela. Seu trabalho ainda não estava concluído quando eu fui chamado. Penso poder dizer que se tratava de uma obra de arte. Em todo caso, para mim. Não necessariamente para ela, pois a questão estética provavelmente não contava para ela, o que lhe importava era a precisão do traço.
Onde começavam os corpos? Onde eles terminavam? Tal era a questão que tomava o sujeito.
Aconteceu algo novo para ela, quando ela havia feito esse deslocamento consistindo em passar de três para duas dimensões, em fazer o salto do volume para a superfície passar dos excrementos no saco plástico para a superfície, para a imagem do corpo. Era um avanço formidável. Um passo de gigante.
O trabalho de Émilie era rigoroso. Ela estava obcecada pela questão dos limites do corpo e de sua representação. Ela nos interrogava constantemente e com insistência sobre as múltiplas dimensões do corpo, sobre seu movimento..., o modo pelo qual ele ocupava o espaço da folha.

A borda do corpo
Assim, ela fazia, por exemplo, enormes esforços para tentar pintar a cor da pele. A cor da pele é uma mistura precisa de diversas cores. Ela perguntava: “Por que você diz que é o capitão Haddock nessa imagem aqui e que é também o capitão Haddock naquela imagem lá?” Ela não podia subjetivar a história de Tintin e do capitão Haddock, ela não podia conceber que para passar da gravura A para a gravura B era necessário construir um cenário que necessitava que o capitão Haddock girasse um quarto de volta. Aliás, a estória de Tintin não lhe interessava. O que lhe interessava era o traço que separa o corpo do espaço no qual ele evolui. Ela perguntava: “Porque o homem é maior do que a casa?” Ela nos indicava dessa maneira que ela mantinha essa grande dificuldade para representar a profundidade, a espessura, o volume do corpo. Uma praticante consultava então com ela uma enciclopédia de história da arte e lhe mostrava as pinturas dos pintores primitivos italianos nos quais os personagens mais eminentes, Deus, os santos, tinham um tamanho maior que o dos outros personagens.
Ela interrogava também a simetria dos corpos - negócio estranho esse da simetria dos corpos – e conseguia representá-los dobrando em dois, numa folha de papel que acabara de ser pintada, uma metade de rosto de rosto em gouache, e permitia obter uma imagem de uma simetria bizarra.
Ela começou então a se interessar pelas máscaras, passo suplementar que ela franqueava nessas pesquisas sobre o envoltório corporal.
Mas ela permanecia sempre insatisfeita e com dificuldades.
Ela se aplicava num esforço constante em querer obstinadamente traçar desenhar o traço perfeito da borda do corpo. E pouco a pouco, ela se aperfeiçoava. Um dia, um  praticante lhe propôs se inscrever numa academia de belas artes para lhe permitir encontrar uma resposta sobre a arte de pintar a cor da pele. A pele “branca” não é de forma alguma rosa! É preciso usar o amarelo de Nápoles, o ocre amarelo e um pouquinho do vermelho indiano, etc...
Mais tarde, lhe proporão expor suas pinturas. Ela percebeu que queriam comprar suas produções. Ela começou então a comercializar seus quadros e a construir uma forma de laço social.
Émilie permaneceu uma dezena de anos no Courtil. A foraclusão do Ego, - para retomar aqui a tese de J.-A. Miller, em Montpellier, em 2011 – exigiu dela uma invenção. A pintura é seu Nome-do-Pai. Para se fazer um corpo, tratava-se para ela de fazer acontecimento de corpo daquilo que escapava dele, de fazer sintoma de um traço sobre o corpo, de bordejar o furo do corpo. Nós nos prestamos à sua invenção. Depois ela foi embora. Pelo que eu sei, ela continua sempre esse trabalho com o mesmo rigor, e continua a expor e a vender suas obras.
Essa criança nos ensinou sobre a clínica da borda a partir do deslocamento metonímico do objeto anal em direção à pintura. O acontecimento de corpo – pois é bem de um acontecimento de corpo que se trata – consistindo em ceder o excremento nos consultórios, se acompanhou de uma cessão de gozo e inaugurou para ela uma nova era na qual ela faz uso de seus pincéis para traçar com rigor a borda do furo deixada pela cessão do objeto[5].

Tradução: Cristina Drummond
Revisão: Tânia Abreu





[1] Bernard Seynhaeve é psicanalista em Lille e diretor do Courtil. Ele é membro da Escola da Causa Freudiana. Exposição apresentada nas 42as jornadas da Escola da Causa Freudiana, “Autismo e psicanálise”, nos dias 6 e 7 de outubro de 2012 em Paris.
[2] Lacan J., O Seminário, livro 24, L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977), aula de 18 de janeiro de 1977, inédito.
[3] Marga Auré, « Le corps du schizophrène : quelques références théoriques », site da ECF.
[4] Reportar-se ao comentário de J-A Miller no Segundo Forum de UFORCA em Montpellier, em maio de 2011.
[5] Ler a esse respeito, “Les sujets autistes, leurs objetes et leur corps”, texto proposto por Éric Laurent na conversação clínica, A l’écoute des autistes, Des concepts et des cas. Paris, 30-06-2012.

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