segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Entrevista : Autismo: psicose ou não? Yves-Claude Stavy

Entrevista:

Yves Claude Stavy [1]– Entrevista na Escola Brasileira de Psicanálise Rio de Janeiro setembro de 2013.

Rachel Amin[2]: O Sr. disse que o autismo nos mostra a estrutura fundamental do humano, o que podemos pensar da relação entre autismo e psicose?
O autismo não é um termo psicanalítico. É termo da psiquiatria. Freud tinha horror a este termo. Foi Bleuler quem o criou. Para Bleuler o autismo era um termo psiquiátrico para a esquizofrenia. Sua crença era a de que o esquizofrênico fazia uma clivagem entre o mundo exterior e o interior.  
Freud nunca considerou que tinha um mundo interno e outro extremo.  Para Freud o mundo é sempre exterior. A questão é de como dar conta do que não é mundo e que diz respeito ao vivo do corpo próprio – o imundo.
Logo, é uma falsa questão para os psicanalistas se perguntarem se o autismo é ou não, uma psicose. Porque também o termo psicose vem da psiquiatria.
Não há dúvida de que a psicanálise esclareceu a psiquiatria. Ela a esclareceu, mas seu papel não é apenas este.  A questão precisa da psicanálise é a de dar conta do que não entra na classificação.
Lacan nunca falou daquele que se diz paranoico. Ele falava ‘paranoico’ que é um termo psiquiátrico, que tem sua lógica pautada na classificação diferencial, esclarecida pela psicanálise. Enquanto a psicanálise declina das certezas psicóticas em função da estrutura. Neste nível Lacan é muito freudiano.
Lembre-se da correspondência Freud/ Jung particularmente até os anos de 1905, até este momento é precioso. Freud elabora ali sua clínica diferencial da psicose graças a Jung.
Jung era assistente de Bleuler. Freud elabora uma clínica diferencial dizendo: na psicose, diferentemente da neurose, há uma retração da libido. Ele não emprega o termo Verwerfung aqui, utiliza retração. Ele continua: temos então dois destinos para a libido - ela pode retornar ao mundo externo, teremos aqui a paranoia, ou a libido fica no corpo e, teremos a esquizofrenia.
Lacan diz exatamente isto: ou o gozo é identificado ao lugar do Outro e isto desemboca no Outro gozador do paranoico – a certeza paranoica é a de que o Outro goza de mim; - ou o gozo está no corpo, temos a esquizofrenia.  Trata-se de uma certeza. As certezas podem declinar, no lugar do Outro o gozo da paranoia, no corpo, a esquizofrenia, identificado à Coisa na melancolia. A perplexidade não se declina, ela está fora da estrutura.
É uma questão para o psicanalista, distinguir a pertinência da clínica diferencial, em que aqui a questão é se fazer parceiro do falasser na sua perplexidade frente à marca do pedaço de língua, fora de sentido, que marcou o corpo vivo.
Esta perplexidade do encontro é uma verdade para a paranoia, é verdadeira para o neurótico e ainda mais verdadeira para aqueles que nós dizemos autistas. Lacan toma esta frase: “estes que dizemos”, é porque não se trata da pertinência da estrutura, por isso, não é apenas verdade para os casos de autismo. É exemplar no autismo. Mais que nunca, aqueles que dizemos autistas convocam o psicanalista se fazer parceiro não de um tipo clínico, mas do mais singular que não entra no tipo, mesmo quando temos um tipo como os que dizemos autista. Nada é pior para o psicanalista que se tomar por último dos psiquiatras. Há alguns entre nós assim, indo até dizer que o autismo é uma quarta estrutura. Não que isto seja absurdo, mas reforça o lado da psiquiatria que não existe mais e, apaga a questão dos psicanalistas no século XXI, que é mais que nunca dar conta do que não pode ser classificado.
2) O que o Sr. pensa a respeito da incidência maior de autismo em meninos?
Trata-se de um termo de classe, isso é verdade, no entanto, não vejo porque negar isto. Mas assim como eu respondi à sua primeira questão, é surpreendente em termos de epidemiologia. Se generalizarmos o Não-todo, o distinguindo da anatomia, não podemos dizer que isto seja uma inverdade em termos genéticos, até porque a genética não contradiz a psicanálise. Por que um portador de síndrome de Down não poderia encontrar um psicanalista? Eu acho surpreendente este terror de muitos analistas que têm uma crença, quase religiosa, que nunca se encontrará pela via da genética uma origem para o que se diz autista. Talvez se encontre algo ou talvez, nunca.  Não vejo em que isto possa nos trazer um problema.  Não nos faz diferença o que se passa do lado do código genético.  
É aqui que vemos a necessidade de diferenciar a ética do psicanalista da estrutura do discurso. O discurso da ciência, quer dizer o discurso da histérica subtraído do lugar do sujeito como agente. 
Você sabe como Lacan, a partir de Television coloca o discurso da ciência. Ele o apresenta como semelhante ao discurso da histérica. No fundo, o discurso da ciência é um discurso do saber evidente e que deixa sobre o fundo de verdade este resto de estrutura que é o objeto (a). A ciência toma este saber como sendo um saber sobre o real. Os psicanalistas consideram que o real é fora da estrutura. Então, o saber da ciência, por mais rigoroso que possa ser não diz nada do real em jogo na experiência analítica.  De fato, na classe dos supostos autistas, nós encontramos o dobro do número de meninos em relação ao de meninas. É um fato comum, e é verdade em termos de classe. Mas nenhum caso é equivalente ao valor do que está em jogo, do que é intransferível de um sujeito ao outro.
3) O que o Sr. pode nos transmitir de sua experiência no Serviço que coordena no que tange ao trabalho com os autistas?
Eu direi mais, talvez com um caso clínico que falarei na próxima segunda-feira na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mais que generalidades que podem não dizer nada.
Uma palavra, entretanto, depois do ano de 1982. Isto foi importante de forma geral. Eu não era sensível desde meu início à “prática entre vários” que começava a aparecer de forma vaga ainda, bem antes da criação do R3, quando começou a aparecer no Courtil.
Eu não era sensível a isto, porque sempre dei prioridade à minha própria experiência. Eu estava disposto a recorrer, neste momento, aos textos de Freud, Lacan, Miller e tudo que quisermos às experiências que precediam à minha, como recurso e não como socorro.
Num primeiro tempo, minha preocupação não era a “prática entre vários”, era, sim, a de viabilizar uma maneira de, mesmo sendo um chefe de Serviço, atender pessoalmente, as crianças daquele Serviço. O que chegou como conclusão rapidamente foi a de que não poderia fazê-lo se o outro não pudesse fazer também. Se não, seria como chefe de Serviço que eu receberia estas crianças.  Minha primeira preocupação era de constituir uma equipe, muito pequena, de clínicos independente da formação universitária, em análise, querendo se arriscar como eu.
É preciso dizer que corremos o risco, sozinhos – é uma escolha. Minha ideia era de que tínhamos de um lado tudo o que acontecia na instituição, para além desta pequena equipe. Era muito diferente, não estávamos divididos entre psicólogos e médicos de um lado e enfermeiros de outro.  Era uma equipe pequena, todos em análise, que decidiram se arriscar nesta empreitada e haveria outras pessoas, dentre elas, enfermeiros e educadores que continuariam a fazer seu trabalho cotidiano com as crianças, sem estarem tomados por esta aposta.
Em dois ou três anos me dei conta de que as coisas não se passavam assim.  Tinha uma pequena coisa que era fundamental, que acontecia perto dos banheiros, com as faxineiras, com os porteiros perto das portas, então me dei conta de que era impossível trabalhar deste jeito. Foi aí que eu comecei a me dizer que era preciso dar início a uma “prática entre vários”. Foi uma constatação e não porque eu quis copiar o Courtil[3]. É isto que faz a força do RI3: não há duas instituições iguais.  A questão era que não podíamos continuar impondo a todo mundo trabalhar desta forma. Desde que constituímos a pequena equipe tudo ia bem, mas há diferenças entre o que se passa em nosso consultório e o que acontece na instituição.
A questão para mim era muito diferente da do Courtil. A partir do momento em que passamos de uma pequena equipe a uma em que todo mundo deveria ser considerado, precisava uma tomada de posição onde todos estivessem de acordo em se engajar nesta aposta. Não quis fazer um protocolo obrigatório onde todos deveriam seguir as regras.  A ideia era a de criar uma pequena instituição assim, deixando os outros profissionais do Hospital trabalharem como quisessem. 
Nesta pequena instituição cada um deveria fazer uma escolha decidida e se orientar em sua prática cotidiana com Freud e Lacan. São duas posições completamente diferentes. Na primeira posição trata-se de tentar incluir a psicanalise na instituição já existente. E a segunda, trata-se de fazer nascer uma instituição a partir da aposta da psicanálise.  Duas posições radicalmente diferentes. Porque se trazemos a psicanálise para uma Instituição, podemos encontrar pessoas que não desejam trabalhar assim. Não estou dizendo que não se possa fazer isto. Mas fazer nascer uma instituição a partir da psicanálise era partir de uma aposta de todos. Estava fora de questão ceder sobre esta aposta. Se isto não fosse possível, eu deixaria do cargo de chefe de Serviço.
Era o início, 1982. Este era um ponto essencial de diferença do Courtil onde eles trouxeram a psicanálise para dentro da instituição com sucesso. Não se trata de uma crítica de minha parte. Tratava-se, naquele momento, de uma escolha minha pessoal, eu não teria feito de outro modo. Não havia nenhuma intenção de não respeitar a quem não quisesse trabalhar desta forma, apenas não me interessava. Tratava-se de criar uma pequena instituição onde cada um se associava a cada um para trabalhar em sua clínica diária com Freud e Lacan. Era este o começo. Esta pequena unidade tornou muito agalmático com o tempo, diferentemente do seu início que era um escândalo. Isto só foi possível porque eu ocupava este lugar de chefe de Serviço. Minha experiência é a seguinte: se desse certo seria porque eu tivera sorte, se não, eu teria me enganado na aposta. 
Em todo caso, o pouco que posso explicar desta sorte, é que eles sempre respeitaram o que eu fazia porque isto partia da experiência. Não se tratava de uma aplicação religiosa da psicanálise. Longe de se tornar um sinônimo de desvio da psicanálise, era o coração da psicanálise na Escola. 




[1] Analista Membro de Escola, (AME)  da Escola da Causa Freudiana e da Associação Mundial de Psicanálise, psiquiatra chefe de Serviço de crianças e adolescentes do hospital Ville Ervrad
[2] Membro EBP|AMP -  CAPSi Teresópolis RJ.
[3] Le Courtil trata-se de um projeto de acolhimento e acompanhamento para crianças e adolescentyes num serviço residencial ou de acolhimento dia orinetadoi pela psicanalise, por Freud, Lacan e Jacques-Allain Miller. O Courtil foi fundado pelo Dr Alexandre Stevens há 30 anos.
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros: Trata-se de uma instituição Belga, em Tournai, na fronteira com a França. Foi uma espécie de CAPSi e transformado  a partir da direção de alguns psicanalistas que puderam trabalhar ali com a orientação lacaniana da psicanálise. RI3 é uma rede que reúne varias instituições do Campo freudiano que trabalham com a orientação da psicanálise lacaniana do Campo freudiano: l’Antenne 110 Bruxelas, o Courtil de Leers-Nord, du CTR de Nonette à Clermont-Ferrand et de Mish’olim de Tel-Aviv.

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