terça-feira, 26 de agosto de 2014

Hacer Lugar – Fundación para la Asistencia

Investigación y Docencia en Autismo y Psicosis Infantil

Marita Manzotti (EOL/AMP) é Presidente do Hacer Lugar – Fundación para la Asistencia, Investigación y Docencia en Autismo y Psicosis Infantil  (Buenos Aires, Argentina). Em entrevista com Ana Martha Maia (EBP/AMP), ela conta a proposta deste belíssimo trabalho e nos apresenta a proposta do “dispositivo suporte” na direção dos tratamentos com o sujeito autista.

1- "Clínica del autismo - el dispositivo soporte" é um testemunho do trabalho que tem sido realizado pelo Hacer Lugar - Fundação para Assistência, Investigação e Docência do Autismo e Psicose Infantil, desde 1992. Gostaria que você apresentasse para nosso Blog o que é o Hacer Lugar, desde a escolha deste nome para esta instituição que você dirige.

2- Na clínica ou na vida cotidiana, em determinados momentos, o sujeito autista apresenta comportamentos que são considerados como estranhos, inadequados e surpreendentes. O terceiro capítulo do livro é intitulado "Clínica del detalle". Como o efeito surpresa é tomado nesta proposta clínica do Hacer Lugar, tendo em vista a posição e a técnica das propostas científicas?

3- Com relação à loucura na infância, como foi elaborado o "dispositivo soporte"? Que oferta é sustentada, na proposta deste dispositivo, para a criança/adolescente autista, para os pais, para os espaços possíveis em que ela estabeleça laços e para a própria instituição, o Hacer Lugar?

Autismo Infantil. Hacer Lugar
No começo não está a origem, está o lugar. Este que serve para se orientar na medida em que permite dispor e ter uma ideia de como está construído o suporte, sobre o qual se inscreve o que está em jogo.
Lacan nos diz que o lugar tem um sentindo muito diferente do lugar da topologia, e que se trata simplesmente do lugar ao qual se chegou. “Ocupa-se o lugar a que um ato nos empurra, e desde esse lugar se vai à direita ou à esquerda, até aqui ou até lá”. Há circunstâncias nas quais é preciso tomar as rédeas de alguma coisa, e essa posição, Lacan nos adverte, se consegue aos empurrões.
Fazer “Lugar” tem sido marcado por este suporte significante desde sua criação, há mais de vinte anos, quando foi fundado em Buenos Aires com o objetivo de levar adiante um trabalho  de  investigação clínica  com  crianças  com Patologias  graves  na  subjetivação  (PGS),  que  permitisse  verificar  a eficácia da psicanálise com eles.

Da orientação: uma leitura
Desde o início, as leituras de Freud e Lacan foram a bússola que nos permitiu deixar do lado a leituras das deficiências, as falhas, o “que não há” ou “não fazem” estas crianças, para nos deixar tomar pela operatória, a produção que eles levam adiante para habitar o mundo. Esta direção se constituiu na via oposta do que, na atualidade, se reconhece com o nome de Trastorno Autista,  Transtorno  Generalizado  do  Desenvolvimento  (TGD) e,  na ultimíssima versão, Espectro Autista, e cujos indicadores diagnósticos são a ausência  ou  as  alterações  das  conquistas no desenvolvimento  previstas  para cada idade.
O que nos possibilitou pensar o autismo no sentido inverso foi o peso que Freud dá ao trabalho psíquico, à atividade psíquica. Freud considera que as perturbações, alterações, exigências que se apresentam ao aparelho psíquico da criança, impõem uma atividade, um trabalho em sua apropriação do mundo, dos objetos e de seu corpo ao diferenciar o mundo da realidade do mundo da satisfação alucinatória. E ele precisa que é trabalho o que permite à criança tolerar a frustração, discriminando e articulando o valor do que afirma e do que existe para ele. O que nos impediria de ler como trabalho o que as crianças autistas realizam? Crianças que, sem déficit orgânico, possuem olhos que não olham, ouvidos que não escutam e corpos desabitados de prazer e dor. Então: Que consequências teria esta leitura? Em oposição às típicas noções de “desconexão autista”, “desinteresse”, “isolamento”, “crianças encapsuladas ou trancadas em uma fortaleza vazia”, a orientação freudiana nos levava a resistir a essa descrição generalizada da apresentação dessas crianças e nos interrogar sobre como não cair nesse caminho tão pouco preciso e confuso.
Para isso foi preciso, então, deixar de utilizar o modelo que o Diagnóstico Psiquiátrico (DSM ou CIE) propõe e construir uma caracterização, uma descrição, que nos orientasse desde o geral, no reconhecimento dos traços próprios da posição dessas crianças, sem anular o recurso, o trabalho e a presença.
Foi assim que pudemos, a partir de observações muito precisas, isolar cinco características presentes:
a)     Um esforço por manter o Outro à margem: sua disposição é variável, pode rejeitar ou consentir aos requerimentos que são feitos sem que nos resultem compreensíveis os motivos, mas se apoia numa clara decisão de não consentimento à implicação
b)    Não é indiferente à presença do outro: são distinguíveis seus comportamentos segundo o observemos ou intervenhamos de maneira manifesta ou discreta
c)     Está alojado na linguagem: compreende nosso código ainda que não se disponha a fazê-lo seu, deixando-nos à espera das manifestações que singularizem sua presença no dito
d)    Não está disposto a ser requerido: se insistimos ou forçamos se isolam ou desencadeiam ataques de violência e mortificação contra si mesmo ou os outros
e)     Trabalha decididamente para conseguir contornar o encontro com o Outro: sabe fazer com esse corpo que porta na direção do desencontro. Há cálculo e antecipação em suas respostas, que lhe permitem evitar o confronto com a implicação, e, para isso, articula manobras que desorientam e nos dividem
Pensar a oferta terapêutica implicava, necessariamente, articular a localização do sujeito a quem realizá-la e sustentar a lógica do caso que permitisse traçar os cálculos, as manobras e as estratégias que permitirão dirigir a cura e sistematizar a experiência.
Acho necessário, neste ponto, insistir na divergência radical existente entre o modus operandi das terapias cognitivo-comportamentais e a psicanálise, pois, enquanto as primeiras tentam realizar um formato cultural da mente e uma aprendizagem automática de condutas, a direção da cura para o praticante de psicanálise se desenrola numa dimensão de resposta do real.
A oferta que viemos sustentando no Hacer Lugar é de implicação ao trabalho psíquico, ao consentimento, à tolerância ao encontro. Um trabalho apoiado numa direção de localização da modalidade própria de cada criança de habitar seu corpo, o mundo e a linguagem, ou seja, um trabalho que não descarta a inespecificidade do sujeito, senão que fundamentalmente a aloja.
Os Obstáculos

Para quem?

Para quem oferecer o trabalho psíquico? Como realizar a oferta se ninguém demanda?

Miller localizava no seu texto: Produzir ao sujeito? A posição de resistência a consentir a falta em ser à maneira – diz – do Bartleby de Melville, que diz “preferiria não fazê-lo”, ou no modo da criança de Diderot que recusa dizer a pela simples razão de que, depois, será obrigado a dizer b; introduz o sério do assunto, enquanto a falta em ser que entranha na linguagem implica um fato de gozo.

A maleabilidade da posição que encarna o psicanalista deveria possibilitar, não deixar de fora, a particular modalidade que tem cada criança de se sustentar desentendido dos encontros com o Outro, nessa particular posição em que, Lacan sustenta com precisão, há um ponto de insondável decisão do ser em jogo.

Esta insondável decisão do ser, introduzida por Lacan no texto Sobre a causalidade psíquica, introduz a dimensão da causa, a etiologia desde uma perspectiva absolutamente diferente das que atualmente a ciência descreve no autismo. Nos confrontamos com que a incalculável decisão põe em jogo a particularidade que apresentam no seu modo de lidar com ela, com o que chamamos o “desentendimento do trauma de lalangue”.

Assim como os neuróticos se sustentam afirmando sua crença em ser um eu, com um nome que os nomeia, na medida em que desconhecem sua relação com o gozo, o que essas crianças sustentam é a abstenção de tomar partido pela afirmação, permanecendo na indeterminação, evitando o confronto com a resposta frente a escolha de “a bolsa ou a vida”, e suportam a difícil e reiterada reprodução do mesmo: contornar os efeitos do trauma de lalangue. Esta posição tão original, sem ceder, tem consequências no corpo, na linguagem e  em  relação  ao  Outro.  Em suas  infinitas  manobras,  desconcerta  pela ausência de cumplicidade com o Outro, o corpo não é afetado e a linguagem não articula um valor de enunciação.

A partir dessa caracterização, tento evidenciar, novamente, o valor que a psicanálise e sua prática cobram na abordagem clínica dessas crianças, na medida em que colocam em jogo o valor do semblante na posição do analista, por uma parte, e o de sustentar o buraco enquanto causa.

Foi, então, de fundamental importância gerar as condições que favoreceram, na prática,  dita  presença,  obstaculizando a  posição do amo (em suas  vertentes  pedagógicas  ou  maternas), e  delineando  a  relevância  de sustentar a clínica em um trabalho de descompletar os praticantes.
O Como
A condição humana supõe, infalivelmente, a dimensão do vazio. Algo se perde da completude e regularidade próprias da natureza, e é o trauma de lalangue sobre o corpo, sua incidência, do que tenta se abster a criança com transtornos precoces na subjetivação (a chamada criança autista).
Essa falta de consentimento o deixa coagulado em uma reiteração infinita do mesmo, sua solução é repetir, voltar a responder sempre a mesma coisa, ficando assim marginalizado de qualquer laço.
“O mais que um”
Os  praticantes,  “sempre  mais  que  um” a partir de  uma  posição  analisante, sustentam a  produção  de  cada  criança  articulando  manobras  de encontro, transformação  no  oposto  ou  volta  contra  si  mesmo,  seguindo  a  via pulsional das crianças, evitando tampar, com a ordem do sentido, o mal-estar que o sem sentido da produção deles gera.
Manter a disponibilidade do “desejo bem concedido, para evitar o risco de pôr em jogo um quantum de angústia que não seria oportuno, nem bem-vindo”,  é  fundamental para Lacan,  conforme  indicado  no  Seminário A Transferência, para acalmar a emergência de angústia que o tratamento do real sem véu produz nos neuróticos.
O dispositivo-suporte”
Tratando de colocar a prova a aplicação possível da psicanálise, foi que tivemos que desenhar um dispositivo que permitisse cumprir a dupla função de um topos (um espaço com alguma ordem que possibilite que as coisas encontrem a maneira de cumprir sua função), por uma parte, e de suporte (mecanismo disposto a manter  um  eixo  em  movimento),  que  não  travasse  nem fosse obstáculo para o singular trabalho que realizam essas crianças.
Um dispositivo que não só dê aval e respeite a criança e sua escolha, senão que, também, permita que continue desdobrando sua própria produção, ao mesmo tempo que possa habilitar uma oferta calculada de implicação ao trabalho, ao consentimento, por uma via diferente do forçamento, da modulação para aquilo que é esperado.
·      Não é um Hospital Dia, nem um Centro Educativo Terapêutico
·      Todos os praticantes são analisantes
·      As inter-consultas e intervenções de outros profissionais são feitas  fora  da  instituição.  Não    oficinas,  nem  atividades propostas
·      A frequência do trabalho de cada criança está determinada em função da estratégia de trabalho traçada pela equipe e em função da tolerância  a  dito  trabalho,  mas  não  excede  três  horas semanais
·      Sempre há “mais que um” (praticante) no trabalho com a criança
·      Os  pais  podem  falar  quando  quiserem,  mas  são  periodicamente chamados para que sejam comunicados das hipóteses que conduzirão o trabalho. Podem participar das sessões
·      Este  mesmo  critério  se  mantém  em  relação  aos  outros profissionais ou professores que possuem algum espaço de trabalho, sejam os derivados  por  nós  ou  os  que  a criança já tinha quando chegou ao dispositivo
·      Todos os terapeutas participam do desenho das hipóteses que regerão a estratégia do trabalho com cada criança, ou seja, todos estão informados sobre a direção da cura
·      Se produz caso a caso uma sistematização conceitual da estratégia que dirige o trabalho, articulado à localização subjetiva em um detalhe  que  sustenta a  modalidade  própria  de  cada criança. Se realiza uma nomeação, de dito detalhe que habita a espera antecipada dos praticantes. A partir da mesma, registra-se se há verificação clínica dos efeitos produzidos a partir disso
·      O dispositivo mantém a lógica do Acerto de certeza antecipada:
Instante de ver,
Tempo de compreender e
Momento de concluir.
A investigação clínica e a formalização teórica nos permitiu estabelecer como direção, a partir da implementação do dispositivo-suporte, alojar o inesperado, enquanto cálculo que produz antecipadamente um lugar de espera para a produção do acontecimento: encontro surpreendente que alcança pegar desprevenida a criança em seu próprio cálculo de eludir ao Outro.
Trata-se de uma  criança  de  poucos  anos  que  apresentava  sérias  dificuldades  desde pequeno, e limitava sua produção à repetição de certos percursos, que caracterizamos:
·      no corpo  (pulando  e  correndo,  de maneira torpe,  deformando  a mandíbula,  gesticulando risadas ou choro, batendo em si mesmo com diferentes objetos),
·      no olhar (esquivo e em permanente desvio, até ficando vesgo),
·      na voz (repetindo frases com ecos, mudando os tons das mesmas frases, reproduzindo canções, desapegado do sentido),
·      com os objetos (usando-os apenas como caixa acústica para aproximá-los do ouvido e alterar os ritmos producidos) e
·      com os outros (ignorando-os, salvo se lhe davam ordens ou imperativos com tons de voz forte, e então respondia corporalmente).
A que nos confronta uma criança com esta apresentação, quando da cura psicanalítica se trata?
Seguindo o que Jacques Lacan ressalta  “algo na criança autista  se ‘congela’, que se, por um lado, é tentativa de uma operação de auto-defesa de tudo o que é do registro do Outro, por outro lado, com sua pantomima, já é uma tentativa de uma operação de autoconstrução”; podemos dizer que nos confrontamos, em princípio, com  questões  fundamentais  para investigar  na relação entre o efeito terapêutico e seu mais além: a função da corporização e a dialética do sujeito e o Outro.
Desde  esta  posição,  que  se  diferencia  radicalmente  da  tão  estendida “terapêutica cognitivo comportamental” (adestramento de condutas), é que nos vemos conduzidos a manter, a partir prática da psicanálise, dispositivos de investigação clínica que permitam fazer lugar à produção de cada criança. Dispositivos que alojem seu saber para poder captar o detalhe (a ser lido) que faz signo da singularidade em jogo.
Localizar  e  nomear  o  modo  único  que cada  criança  mantém  no  seu tratamento do corpo, do gozo e do Outro, sua “autoconstrução”, habilita a via da intervenção. Essa intervenção opera um vazio que aponta ao real na surpresa e dá lugar à novas respostas, à invenções que habilitam novas formas de ser ali.
“O desviador” foi  a  nomeação que permitiu a intervenção no caso dessa criança.  Esse  traço próprio de Juan, enquanto hipótese, permitiu uma espera antecipada regida pela introdução de desvios. Operar com seu modo de solução,  manter  seus  rodeios,  foi  a  via  que  os  diversos  participantes utilizaram no dispositivo.
Desviar o percurso de mensagens verbais, objetos e olhares, produziu uma parada em seus percursos, ficou olhando o que acontecia e no ato começou a intervir com o corpo e as palavras, organizando o destino do desviado.
O efeito de surpresa já implica um encontro com algo não calculado, que perturba a estratégia defensiva no mesmo território em que surge.
No ato, Juan consentiu ao trabalho diante do imprevisto, do não calculado, do que escapa às suas previsões. Na surpresa, surgiu um código comum.
Diante de um obstáculo suportável, a invenção ficará novamente do seu lado. A intervenção analítica em si mesma pode produzir um encontro tal que funde este acontecimento, o que autoriza a conceber o analista e sua posição, situada  no  lugar  do  trauma,  enquanto  que  sua  intervenção  “sirva”  à afetação corporal, que implica certo consentimento ao lugar do Outro, e uma nova resposta frente ao gozo que não seja o estrago da irrupção massiva no corpo. Inclusive ali onde a criança terá que sustentar a decisão que tomou de entrada.


Marita Manzotti
                                                                                                                          
                                                                                                                       Tradução: Ishtar Rincon
                                                                                                        Revisão: Anna Carolina Nogueira