terça-feira, 29 de abril de 2014


 “À ciel ouvert” e os 30 anos do Courtil

Ana Martha Maia (EBP/AMP)
Sábado, 14 de setembro de 2013. Na pequena e bucólica cidade de Tournai (Bélgica), o lançamento de um documentário reuniu mais de 500 pessoas. No hall, certa alegria no ar, durante o tempo de espera para a entrada. A grande sala do cinema Imagix estava cheia. Crianças, famílias, profissionais e amigos do Courtil foram convidados para esta primeira projeção de À ciel ouvert, de Mariana Otero, filmado em 2012. Seguida de um debate e um cocktail, foi um dia de dupla comemoração, pelo fascinante resultado do trabalho de Mariana e os 30 anos do Courtil!
Foi uma curiosidade sobre o enigma da loucura que levou Mariana a pensar este filme e escolher realizá-lo no Courtil, embora tivesse constatado, desde a primeira reunião com os coordenadores da instituição, que ali nada encontraria com este nome. Surpreendeu-se com o fato de que ao invés de um déficit, eles se referem a diferentes estruturas, como se cada um tivesse uma língua própria, enquanto a maioria das pessoas, uma língua comum. No início, Mariana não entendia nada do que diziam, sequer o que faziam neste lugar, tanto as crianças e jovens, quantos os intervenientes. No entanto, com o tempo, há uma mudança em seu olhar. E À ciel ouvert é o resultado disso, um filme que captura o olhar do espectador.
Durante esta exibição privada do documentário, eu literalmente não tirei os olhos da tela. Através do olhar-câmara de Mariana, eu me senti participando do dia-a-dia da instituição. A cozinha, as portas, as paredes, o jardim, a minhoca na mão da menina, o trabalho no Ateliê do semblante, a música, o que se diz no silêncio das palavras não ditas, o invisível do olhar... Mariana consegue estar intimamente com as crianças e intervenientes em uma presença que, longe de ser invasora, ao mesmo tempo mantém a distância necessária que a possibilita escolher, entre as 180 horas de gravação, as cenas do cotidiano que deseja compartilhar com o espectador. Atenta ao modo singular com que o sujeito lida com o próprio corpo e o outro no autismo e na psicose, mesmo sem nada saber sobre isso, ela decide não trabalhar com seu engenheiro de som e amarra uma câmera em seu corpo, com um sistema leve e flexível que jamais havia utilizado. Com um “corpo-câmera”, Mariana se torna uma interveniente entre os outros, e o que mais me surpreende em seu documentário é que ela consegue transmitir o que é impossível de mostrar: o que é da ordem da contingência, do imprevisto, do encontro, da invenção singular que surge de forma inesperada. Através de Jean-Hugues, Alysson, Evanne e Amina, assim como todos os que trabalham no Courtil, seu filme testemunha viva e poeticamente os efeitos da psicanálise de orientação lacaniana no tratamento do autismo.
Após a exibição, Alexandre Stevens animou um debate muito especial, aberto à plateia, em que participaram Dominique Holvoet, Bernard Seynhaeve, Véronique Mariage, Bruno de Halleux, Philippe Hellebois, entre tantos outros, momento também do impactante testemunho de uma mãe sobre os efeitos recolhidos do trabalho que o filho tem realizado no Courtil. Depois do cocktail em uma das salas do cinema, a comemoração pelos 30 anos da instituição prosseguiu com um delicioso jantar e a festa no Collège Notre-Dame, com direito a um grande bolo flamejante, discursos, muitas palmas e boa música para dançar.
Para completar, no final do ano, a publicação de “À ciel ouvert, entretiens – Le Courtil, l’invention au quotidien” (Édition Buddy Movies, 2013). O filme, a festa e o livro marcam, assim, o tempo de trabalho desta prática original da psicanálise aplicada que tem muito a nos transmitir.
             

segunda-feira, 28 de abril de 2014


Durante a festa dos 30 anos do Courtil, em Tournai, Ana Martha Maia perguntou a Patrizia Torrecuso se ela gostaria de participar do Blog da EBP sobre o autismo, com um texto a respeito da experiência de sair de São Paulo para estagiar no Courtil e estar lá até hoje! Um tempo depois, ela respondeu com este bonito testemunho:

Meu caso clínico" no Courtil, ou meu caso com o Courtil.

Patrizia Torrecuso 

Quando fui solicitada para escrever para o blog sobre minha experiência no Courtil, minha primeira reação foi de entusiasmo: depois desses treze anos de prática esta é a primeira vez que tento transmitir o que foi para mim essa experiência. Não atribuo ao outro de maneira alguma esse fato, mas à minha necessidade, ao meu "tempo de ver", processo intimamente ligado à minha experiência analítica, enquanto paciente, "analisante" para ser mais precisa. 
Em um segundo momento, eu me senti acuada: nesse texto não deveria falar de um caso de minha prática, mas de minha experiência. Isso para mim veio dito dessa maneira, quero dizer, como eu interpretei: deveria falar de "meu caso clínico" no Courtil, ou ainda meu caso com o Courtil, por que acho que seria questão desses dois tipos de casos.
Final de 2000, eu chegava em Tournai, de "mala e cuia" para uma experiência inicial de três à seis meses de estágio no grupo de jovens adultos. No ano anterior havia finalizado o curso de psicologia na PUC/SP, cinco anos de grande envolvimento, desejo de saber e que tiveram como consequência um profundo desejo, o de conhecer mais e mais o que a psicanálise de orientação lacaniana poderia me ensinar como prática clínica com o sujeito autista e o psicótico. Depois de percorrer uma bibliografia sobre psicanálise e autismo (Leo Kanner, Margareth Mahler, Francis Tustin, Marie Christine Laznik-Penot, etc), na tentativa de "explicar" a posição da psicanálise lacaniana face à essa "estrutura" tão discutida enigmática, que mesmo atualmente é causa de tantas controvérsias, fui tentar decifrar o seminário XI "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise". O resultado foi uma tentativa de monografia que me rendeu uma nota boa, mas a sensação de nada saber e a vontade ir "beber na fonte". Uma professora de psicanálise da PUC me falou do Courtil como possibilidade de estágio, formação e hospedagem! Enfim, era muito bom para ser verdade. Comecei a colocar meu projeto em prática, professor de francês, carta ao diretor e rapidamente tive uma resposta positiva. Meu passaporte italiano me daria uma tranquilidade, caso quisesse prolongar esse período, mas pensava que seriam só alguns meses. Sempre fui muito ligada à minha família, às belezas naturais do Brasil, mesmo se a violência urbana de São Paulo não fizesse parte de meu projeto de fundar uma família e criar filhos, a ideia de viver longe não era uma ideia inicial. Pensava em me formar por um tempo e trazer para meu país, como instrumento de trabalho, o que teria conseguido aprender e apreender.
O trabalho do estágio começou logo e rapidamente percebi que uma das coisas que o Courtil não ensina é como cada um deve trabalhar. Parece contraditório, mas na prática não é nem um pouco, porque não há uma fórmula, uma maneira única de "interagir" com esses sujeitos. Nesse espaço novo que me cercava e que me era tão atraente, fascinante e assustador, de início. Esses jovens falavam e me solicitavam. E eu, do meu lado, querendo me comunicar, mas o limite da língua fazendo barreira real. Foi então, meio sem escolha, que decidi tentar encontrar minha maneira de trabalhar com eles, mesmo se esse limite real acarretava grandes dificuldades e angústias: estava lá para isso, era meu desafio.
Ao mesmo tempo, via meus colegas psicanalistas que seguiam uma formação em Paris, no Courtil, uma formação contínua e permanente. E sempre com algo que me impressionava, uma humildade face ao saber, face à teoria lacaniana, o que me tranquilizava, sobretudo quando expressavam a dificuldade de apreender os conceitos de Lacan. Logo quis participar de tudo isso, minha ideia era fazer o máximo possível, nesse tempo. Mas não sabia nesse momento o quanto estava enganada, pensando que seria eu que determinaria esse tempo, que fosse algo conhecido e ao meu alcance. Hoje sei que esse tempo não é assim, cronológico, e que só a análise nos permite vê-lo avançar e parar em outros momentos, funcionando de maneira outra que não a convencional. Paris, então, acabou rapidamente vindo como uma evidência, e um ano depois, uma análise começaria, depois de um ano de errância nos significantes de meu gozo. Mas era um começo, eu tentava entrar no discurso analítico, curso de Jacques-Alain Miller às quartas feiras, Section Clinique, leituras, os seminários do Courtil, apresentação no RI3 (casos da prática institucional), eu dava "tiros" para todos os lados, na tentativa de me formar. E paralelamente a essa formação, o trabalho no Courtil, o encontro com a psicose, com o real desses jovens, bem diferente do que havia experimentado na minha curta prática no Brasil, em estágio em hospital psiquiátrico, como AT (acompanhante terapêutico).
A convivência com os jovens era mais direta. Logo que fui contratada pela instituição, três meses depois de chegar, comecei a viajar com eles, a fazer a noite (dormir na instituição), tudo isso me colocava face-a-face com real desses jovens que, claro, não me deixava incólume face ao meu próprio real e as minhas questões. Acho que isso é o que há de tão rico em uma experiência desta ordem, é um mergulho nas profundezas do inconsciente.
Creio que se fosse colocar em palavras o que esses anos de Courtil me ensinaram sobre a prática institucional, eu diria que deixar de lado ideias pré-concebidas, a vontade de compreender e tirar conclusões rápidas demais sobre algum sujeito com quem me senti confrontada às dificuldades impostas pelo real que o invadia no momento... tudo isso não deve ser muito novo para quem exerce a psicanálise de orientação lacaniana no domínio privado. A minha prática até o momento se restringe ao Courtil, não me sentia pronta para começar a atender aqui, em consultório, precisei desse tempo.
Hoje penso que o savoir faire que acabamos incorporando no Courtil, no tempo que passamos trabalhando, é muito particular e singular. Está anexado ao grupo de pessoas que trabalham no Courtil, quer sejam ou não psicanalistas, mas imersos em um discurso psicanalítico, pela formação mesmo a que somos submetidos de maneira constante, nas reuniões clínicas, seminários, supervisões, análise e que acabam investindo nessa prática.
Há um rigor, uma organização, uma renovação a cada ano escolar, que dá início a outro ano de trabalho: sempre há algo de novo que permite a não instalação do "mesmo", como um laboratório institucional, onde tudo sempre é questionado, revisado e que faz diferença. A não cristalização do saber em apenas algumas pessoas, sendo algo que circula, que não é fixo. Mesmo que alguns lugares sejam meio fixos, como os dos responsáveis terapêuticos, não significa que se identificam a esse semblante de saber, a esse discurso de mestre. Para mim, que cheguei com uma transferência enorme, uma idealização do Courtil, da psicanálise lacaniana, foi um verdadeiro encontro me deparar com essa humildade em relação ao saber, com o respeito e a sensibilidade com que as estruturas são abordadas, como o sujeito é pensado.
O respeito face ao sujeito, suas diferenças, suas invenções e singularidade, em uma postura de proximidade e de escuta atenta. Proximidade humana, em que o objetivo não seja classificar o sujeito, em que a estrutura e o diagnóstico, mesmo se pensados, não venham servir de limites no que poderá ser construído ou determinado na história desse sujeito. E o que é muito incrível é ser surpreendido pelo que acaba sendo construído nessas trajetórias de vida, nesses anos que esses jovens atravessam vivendo no Courtil. Muitas vezes, eles se dirigem ao Courtil em um estágio subjetivo superprecário, invadidos, alucinados. No entanto, em um tempo muito próprio a cada um, podem viver sozinhos, ir e vir nos solicitar, sem a necessidade de uma presença contínua, de uma colagem ao outro. Cada sujeito como único.