sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Impor uma ciência totalizante ao autismo

Jean-Claude Maleval

Impor uma ciência totalizante ao autismo a quem conhece os limites e as incertezas deste campo é a ambição de M. Fasquelle e alguns deputados, Os Republicanos, a favor de um projeto de resolução registrado na Assembleia Nacional. De onde extraem uma ciência pronta sobre o autismo? Ela advém de recomendações de 2012 elaboradas pela mais Alta Autoridade de Saúde (HAS). Ora, os deputados fazem muitos desvios destes pontos. As recomendações da Alta Autoridade em Saúde tentam auxiliar os clínicos em suas decisões e a preservar o bom discernimento dos mesmos. Ao transformarem estas recomendações em injunções, os deputados querem ditar aos profissionais o que devem fazer e pensar, privando-os da responsabilidade de seus atos e da necessária adaptação destes à singularidade do paciente. Pelo prejuízo à liberdade de prescrição, milhares de médicos reagiram rapidamente, enquanto que os psicólogos e psiquiatras dos hospitais denunciaram o perigo que corre a liberdade acadêmica, inseparável de toda elaboração e difusão dos conhecimentos científicos. No que concerne ao tratamento dos autistas, os deputados, que certamente não leram as 465 páginas do argumento científico da HAS, acreditam, ingenuamente, que os 3 métodos recomendados são cientificamente válidos. Ora, não são deforma alguma! Eles são recomendados por falta de coisa melhor. Na meta-análise, foi regularmente constatado que mais de 50% das crianças não melhoram. Os trabalhos posteriores a 2012 confirmam que as melhoras da cognição e dos comportamentos do método ABA (dos 3, o mais considerado) são “moderados”, enquanto que, aquelas obtidas através da adaptação social e do ponto central dos distúrbios autísticos são “fracos”. Isto corrobora uma expertise realizada em 28 estruturas experimentais francesas, que dispunham de condições muito favoráveis para dar curso ao método ABA, graças a financiamentos e a um alto nível de enquadramento geral. Depois de 4 anos de tratamento, 19 crianças em 578 conseguiram ter acesso a um “espaço comum”. A taxa de sucesso é em torno de 3%, o que confirma um consenso na literatura científica atual: os resultados do método ABA concernentes à “adaptação social” são “fracos”. A equivalente à HAS inglesa, a NICE, prega, desde 2013, intervenções psicossociais multidisciplinares no tratamento do autismo e não faz mais nenhuma menção ao método ABA. Acreditando não dispor de elementos suficientes para tomar uma posição, por não poder considerar os estudos de caso como documentos-provas, a HAS classifica a psicanálise e a psicoterapia institucional entre os “métodos não consensuais” no tratamento dos autistas. Escutando apenas sua própria vontade, os deputados passam por cima dos detalhes de forma abusiva incluindo-os na lista dos “não recomendáveis”. Um estudo do INSERM de 2014 mostra a eficácia dos tratamentos psicodinâmicos, podendo levar a HAS a modificar sua posição a respeito. Uma petição foi assinada por numerosas personalidades que rapidamente alcançou milhares de assinaturas, para que profissionais orientados pela psicanálise possam continuar sendo integrados à oferta de tratamento para autistas. Antes de “nos empenharmos sistematicamente sobre a responsabilidade penal dos profissionais de saúde que se opõem aos avanços científicos”, nós não deveríamos examinar a responsabilidade política dos deputados mal informados que procuram resoluções liberticidas?

Tradução: Rachel Amin
Revisão: Bartyra Ribeiro de Castro

Sobre uma doidice deletéria em torno do autismo

François Ansermet
Professor de pedopsiquiatria na Universidade de Genebra, chefe do Serviço de psiquiatria de crianças e adolescentes nos Hospitais Universitários de Genebra, Psicanalista.

É surpreendente que o autismo se torne a essa altura um debate político. Talvez seja um signo paradoxal de uma época em que todos estão conectados, ligados a pequenas máquinas que isolam uns dos outros, que impedem os encontros com a ilusão de facilitá-los. O que quer que seja, estamos na época de uma doidice em torno do autismo.

1/ De onde vem essa doidice?

Há diferentes eixos a se considerar:

- uma epidemiologia que se tornou confusa: a porcentagem varia de notificação para notificação

- as transformações nas classificações que se tornam cada vez mais inclusivas e cada vez menos diferenciais – o que parece contraditório com o projeto do momento atual de isolar suas bases biológicas, o que necessitaria, sobretudo, pesquisas baseadas em endofenótipos precisos, bem isolados – no que a clínica orientada pela psicanálise poderia contribuir de maneira significativa.

- paralelamente a essas classificações, os tratamentos cada vez mais estandardizados são estabelecidos segundo guidelines que não levam mais em conta a clínica, do caso a caso – enquanto que a clínica é um método que dá acesso à singularidade enquanto tal, que é aquilo que é próprio do humano. É verdade que estamos na época do Evidence Based Medicine, mas esta deveria ser cruzada com as questões da medicina personalizada, com uma medicina centrada na pessoa, que estão também no centro da pesquisa médica de hoje;

É DELETÉRIO COLOCAR UMA RELAÇÃO DE FORÇAS, EM TERMOS DE EXCLUSÃO

- pode-se também reportar essa doidice, que desemboca num projeto de interdição da psicanálise, na abordagem do autismo, a um mal-entendido sobre o que significam as bases genéticas: o fato de que um indivíduo tenha um acometimento em seu neuro-desenvolvimento – o que é o caso no autismo – não diz qual sujeito vai se deduzir disso. O fato de que existam bases biológicas não exclui a psicanálise, e seu trabalho centrado no sujeito, o que ele manifesta de específico, seu sofrimento, o de seus pais... Em minha opinião é deletério colocar uma relação de forças, em termos de exclusão recíproca, entre a pesquisa neurobiológica ou genética e a clínica psicanalítica. Fazendo-se uma certa retrospectiva, pode-se mesmo ser surpreendido por essa maneira de colocar as coisas.

O MAL ENTENDIDO DAS BASES GENÉTICAS

A psicanálise não é um campo obscurantista que gostaria de dispensar os ensinos da neurobiologia, da genética e de seus dados contemporâneos. Como o demonstra o fato da plasticidade neuronal, um dado vindo da abordagem científica pode levar a um achado inédito entre as neurociências e a psicanálise, nesse caso em torno da irredutível questão da singularidade: o que faz com que cada humano seja único, diferente e insubstituível.

POSICIONAMENTOS UNICAMENTE IDEOLÓGICOS

2/Como sair da doidice?

Estar numa abordagem fundada sobre os dados da ciência, permitir cuidar do autismo se apoiando sobre as evidências vindas da pesquisa, supõe não se deixar levar a posicionamentos apenas ideológicos, tais como aqueles que invadem os debates atuais. Tal perspectiva implica, ao contrário, numa abordagem que se apoie sobre conquistas, que zele por não desfazer os laços com a psicanálise, e com sua clínica, que abram a via para as dimensões próprias ao sujeito. A psicanálise, mais do que ser rejeitada, deveria, ao contrário, ser colocada na posição de fiadora, a fim de que tais dimensões possam ser incluídas nas novas abordagens do cuidar a serem desenvolvidas com as pessoas autistas.



Trad: Cristina Drummond