François Ansermet
Professor de pedopsiquiatria na Universidade de Genebra, chefe do Serviço de psiquiatria de crianças e adolescentes nos Hospitais Universitários de Genebra, Psicanalista.
É surpreendente que o autismo se torne a essa altura um debate político. Talvez seja um signo paradoxal de uma época em que todos estão conectados, ligados a pequenas máquinas que isolam uns dos outros, que impedem os encontros com a ilusão de facilitá-los. O que quer que seja, estamos na época de uma doidice em torno do autismo.
1/ De onde vem essa doidice?
Há diferentes eixos a se considerar:
- uma epidemiologia que se tornou confusa: a porcentagem varia de notificação para notificação
- as transformações nas classificações que se tornam cada vez mais inclusivas e cada vez menos diferenciais – o que parece contraditório com o projeto do momento atual de isolar suas bases biológicas, o que necessitaria, sobretudo, pesquisas baseadas em endofenótipos precisos, bem isolados – no que a clínica orientada pela psicanálise poderia contribuir de maneira significativa.
- paralelamente a essas classificações, os tratamentos cada vez mais estandardizados são estabelecidos segundo guidelines que não levam mais em conta a clínica, do caso a caso – enquanto que a clínica é um método que dá acesso à singularidade enquanto tal, que é aquilo que é próprio do humano. É verdade que estamos na época do Evidence Based Medicine, mas esta deveria ser cruzada com as questões da medicina personalizada, com uma medicina centrada na pessoa, que estão também no centro da pesquisa médica de hoje;
É DELETÉRIO COLOCAR UMA RELAÇÃO DE FORÇAS, EM TERMOS DE EXCLUSÃO
- pode-se também reportar essa doidice, que desemboca num projeto de interdição da psicanálise, na abordagem do autismo, a um mal-entendido sobre o que significam as bases genéticas: o fato de que um indivíduo tenha um acometimento em seu neuro-desenvolvimento – o que é o caso no autismo – não diz qual sujeito vai se deduzir disso. O fato de que existam bases biológicas não exclui a psicanálise, e seu trabalho centrado no sujeito, o que ele manifesta de específico, seu sofrimento, o de seus pais... Em minha opinião é deletério colocar uma relação de forças, em termos de exclusão recíproca, entre a pesquisa neurobiológica ou genética e a clínica psicanalítica. Fazendo-se uma certa retrospectiva, pode-se mesmo ser surpreendido por essa maneira de colocar as coisas.
O MAL ENTENDIDO DAS BASES GENÉTICAS
A psicanálise não é um campo obscurantista que gostaria de dispensar os ensinos da neurobiologia, da genética e de seus dados contemporâneos. Como o demonstra o fato da plasticidade neuronal, um dado vindo da abordagem científica pode levar a um achado inédito entre as neurociências e a psicanálise, nesse caso em torno da irredutível questão da singularidade: o que faz com que cada humano seja único, diferente e insubstituível.
POSICIONAMENTOS UNICAMENTE IDEOLÓGICOS
2/Como sair da doidice?
Estar numa abordagem fundada sobre os dados da ciência, permitir cuidar do autismo se apoiando sobre as evidências vindas da pesquisa, supõe não se deixar levar a posicionamentos apenas ideológicos, tais como aqueles que invadem os debates atuais. Tal perspectiva implica, ao contrário, numa abordagem que se apoie sobre conquistas, que zele por não desfazer os laços com a psicanálise, e com sua clínica, que abram a via para as dimensões próprias ao sujeito. A psicanálise, mais do que ser rejeitada, deveria, ao contrário, ser colocada na posição de fiadora, a fim de que tais dimensões possam ser incluídas nas novas abordagens do cuidar a serem desenvolvidas com as pessoas autistas.
Trad: Cristina Drummond
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