terça-feira, 22 de outubro de 2013

Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública

O Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, que reúne cerca de 500 profissionais e 100 instituições em torno do debate atual sobre o tratamento do autismo, foi criado no final de 2012 e desde então vem promovendo uma série de atividades em São Paulo. Em março, ocorreu o primeiro grande encontro com a apresentação dos vinte e um grupos de trabalho, cujos temas articulam-se aos vários eixos que fazem parte deste debate: epistêmico, clínico, ético e político. Também, nesta ocasião, com a realização da primeira plenária, pode-se elaborar a Carta de Princípios do MPASP, definir as estratégias de ação e constituir um Comitê Gestor nacional.
Nos primeiros meses de 2013, várias instituições do Movimento, inclusive a EBP, participaram da consulta pública do documento, elaborado por diversas áreas temáticas no Ministério da Saúde, denominado  Linha de cuidado para Atenção às Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo na Rede de Atenção Psicossocial do SUS, que recomenda a pluraridade e a diversidade de abordagens no atendimento e tratamento. Em abril, no entanto, por ocasião do Dia Mundial do Autismo, o Ministério da Saúde lança um outro documento elaborado pela área da reabilitação/deficiência. Este fato desencadeia talvez a mais importante presença do Movimento no cenário politico, uma vez que uma comissão foi recebida pelo Ministro da Saúde - como resultado deste encontro, o Ministério da Saúde oficializa também o documento LInha de Cuidado  e o ministro institui um Comitê Assessor para promover uma articulação entre estas duas propostas, entre o campo da reabilitação e o campo da atenção psicossocial. O MPASP tem assento neste Comitê e conta com a colaboração de muitos colegas na análise dos documentos e na elaboração de propostas.
O tema da reabilitação, uma vez que favorece a restrição de propostas terapêtucias às abordagens comportamentais - tal como está desenvolvido nas diretrizes para implantação dos Centros de Reabilitação - tornou-se central no encontro e plenária realizados no dia 25 de maio, quando também pode-se debater e conhecer o trabalho de assessoria que foi realizado junto à Prefeitura do Município de São Paulo, deliberando-se que se deve apoiar e sempre indicar as diretrizes presentes no documento Linha de Cuidado.
Em junho, organizou-se um evento destinado à  apresentação das experiências institucionais no tratamento do autismo no SUS e no dia 14 de setembro tivemos o último encontro que se dividiu em duas partes: na primeira, quatro abordagens psicanalíticas para o autismo expuseram diferentes propostas instituicionais e de tratamento, como também as diferenças de orientação dentro da própria psicanálise; na segunda parte, em plenária, os presentes decidiram pelas principais orientações a ser dado ao Movimento, especialmente ao trabalho no Comitê do Ministério da Saúde. Programou-se um novo encontro no dia 23 de novembro de 2013, novamente em São Paulo, tendo por tema a detecção e a intervenção precoces.
O debate segue permanentemente pela lista de discussão e no dia 21/09 o Movimento finalizou uma carta aberta posicionando-se em relação ao programa “Autismo: universo particular” realizado por Dráuzio Varela no Fantástico, da Rede Globo.
Vários membros da EBP, um a um, implicaram-se na própria gestação do Movimento participando das primeiras reuniões e nos grupos de trabalho. Depois do X Congresso de Membros, em Porto de Galinhas, o Conselho da EBP decidiu nomear um grupo de trabalho, com Paula Pimenta na coordenação, e este passou a ter a função de representar institucionalmente a EBP no Movimento.
Retomando as palavras de Leonardo Gorostiza e Judith Miller, quando da convocação de uma reunião em Buenos Aires, durante o último congresso da AMP, em abril de 2012, o tema do autismo tem conseqüências para o próprio futuro da psicanálise. A iniciativa deste debate e importantes realizações pela AMP puderam desenhar uma política da orientação lacaniana que muito nos fundamenta agora nesta experiência inédita de estarmos em interlocução e em uma luta política pela psicanálise conjuntamente com outras instituições ou grupos analíticos. Creio ser este um dos efeitos de formação do analista que a Escola de Lacan pode produzir.
Heloisa Prado Rodrigues da Silva Telles

Para mais informações sobre o MPASP, acesse http://psicanaliseautismoesaudepublica.wordpress.com/about/


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Entrevista : Autismo: psicose ou não? Yves-Claude Stavy

Entrevista:

Yves Claude Stavy [1]– Entrevista na Escola Brasileira de Psicanálise Rio de Janeiro setembro de 2013.

Rachel Amin[2]: O Sr. disse que o autismo nos mostra a estrutura fundamental do humano, o que podemos pensar da relação entre autismo e psicose?
O autismo não é um termo psicanalítico. É termo da psiquiatria. Freud tinha horror a este termo. Foi Bleuler quem o criou. Para Bleuler o autismo era um termo psiquiátrico para a esquizofrenia. Sua crença era a de que o esquizofrênico fazia uma clivagem entre o mundo exterior e o interior.  
Freud nunca considerou que tinha um mundo interno e outro extremo.  Para Freud o mundo é sempre exterior. A questão é de como dar conta do que não é mundo e que diz respeito ao vivo do corpo próprio – o imundo.
Logo, é uma falsa questão para os psicanalistas se perguntarem se o autismo é ou não, uma psicose. Porque também o termo psicose vem da psiquiatria.
Não há dúvida de que a psicanálise esclareceu a psiquiatria. Ela a esclareceu, mas seu papel não é apenas este.  A questão precisa da psicanálise é a de dar conta do que não entra na classificação.
Lacan nunca falou daquele que se diz paranoico. Ele falava ‘paranoico’ que é um termo psiquiátrico, que tem sua lógica pautada na classificação diferencial, esclarecida pela psicanálise. Enquanto a psicanálise declina das certezas psicóticas em função da estrutura. Neste nível Lacan é muito freudiano.
Lembre-se da correspondência Freud/ Jung particularmente até os anos de 1905, até este momento é precioso. Freud elabora ali sua clínica diferencial da psicose graças a Jung.
Jung era assistente de Bleuler. Freud elabora uma clínica diferencial dizendo: na psicose, diferentemente da neurose, há uma retração da libido. Ele não emprega o termo Verwerfung aqui, utiliza retração. Ele continua: temos então dois destinos para a libido - ela pode retornar ao mundo externo, teremos aqui a paranoia, ou a libido fica no corpo e, teremos a esquizofrenia.
Lacan diz exatamente isto: ou o gozo é identificado ao lugar do Outro e isto desemboca no Outro gozador do paranoico – a certeza paranoica é a de que o Outro goza de mim; - ou o gozo está no corpo, temos a esquizofrenia.  Trata-se de uma certeza. As certezas podem declinar, no lugar do Outro o gozo da paranoia, no corpo, a esquizofrenia, identificado à Coisa na melancolia. A perplexidade não se declina, ela está fora da estrutura.
É uma questão para o psicanalista, distinguir a pertinência da clínica diferencial, em que aqui a questão é se fazer parceiro do falasser na sua perplexidade frente à marca do pedaço de língua, fora de sentido, que marcou o corpo vivo.
Esta perplexidade do encontro é uma verdade para a paranoia, é verdadeira para o neurótico e ainda mais verdadeira para aqueles que nós dizemos autistas. Lacan toma esta frase: “estes que dizemos”, é porque não se trata da pertinência da estrutura, por isso, não é apenas verdade para os casos de autismo. É exemplar no autismo. Mais que nunca, aqueles que dizemos autistas convocam o psicanalista se fazer parceiro não de um tipo clínico, mas do mais singular que não entra no tipo, mesmo quando temos um tipo como os que dizemos autista. Nada é pior para o psicanalista que se tomar por último dos psiquiatras. Há alguns entre nós assim, indo até dizer que o autismo é uma quarta estrutura. Não que isto seja absurdo, mas reforça o lado da psiquiatria que não existe mais e, apaga a questão dos psicanalistas no século XXI, que é mais que nunca dar conta do que não pode ser classificado.
2) O que o Sr. pensa a respeito da incidência maior de autismo em meninos?
Trata-se de um termo de classe, isso é verdade, no entanto, não vejo porque negar isto. Mas assim como eu respondi à sua primeira questão, é surpreendente em termos de epidemiologia. Se generalizarmos o Não-todo, o distinguindo da anatomia, não podemos dizer que isto seja uma inverdade em termos genéticos, até porque a genética não contradiz a psicanálise. Por que um portador de síndrome de Down não poderia encontrar um psicanalista? Eu acho surpreendente este terror de muitos analistas que têm uma crença, quase religiosa, que nunca se encontrará pela via da genética uma origem para o que se diz autista. Talvez se encontre algo ou talvez, nunca.  Não vejo em que isto possa nos trazer um problema.  Não nos faz diferença o que se passa do lado do código genético.  
É aqui que vemos a necessidade de diferenciar a ética do psicanalista da estrutura do discurso. O discurso da ciência, quer dizer o discurso da histérica subtraído do lugar do sujeito como agente. 
Você sabe como Lacan, a partir de Television coloca o discurso da ciência. Ele o apresenta como semelhante ao discurso da histérica. No fundo, o discurso da ciência é um discurso do saber evidente e que deixa sobre o fundo de verdade este resto de estrutura que é o objeto (a). A ciência toma este saber como sendo um saber sobre o real. Os psicanalistas consideram que o real é fora da estrutura. Então, o saber da ciência, por mais rigoroso que possa ser não diz nada do real em jogo na experiência analítica.  De fato, na classe dos supostos autistas, nós encontramos o dobro do número de meninos em relação ao de meninas. É um fato comum, e é verdade em termos de classe. Mas nenhum caso é equivalente ao valor do que está em jogo, do que é intransferível de um sujeito ao outro.
3) O que o Sr. pode nos transmitir de sua experiência no Serviço que coordena no que tange ao trabalho com os autistas?
Eu direi mais, talvez com um caso clínico que falarei na próxima segunda-feira na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mais que generalidades que podem não dizer nada.
Uma palavra, entretanto, depois do ano de 1982. Isto foi importante de forma geral. Eu não era sensível desde meu início à “prática entre vários” que começava a aparecer de forma vaga ainda, bem antes da criação do R3, quando começou a aparecer no Courtil.
Eu não era sensível a isto, porque sempre dei prioridade à minha própria experiência. Eu estava disposto a recorrer, neste momento, aos textos de Freud, Lacan, Miller e tudo que quisermos às experiências que precediam à minha, como recurso e não como socorro.
Num primeiro tempo, minha preocupação não era a “prática entre vários”, era, sim, a de viabilizar uma maneira de, mesmo sendo um chefe de Serviço, atender pessoalmente, as crianças daquele Serviço. O que chegou como conclusão rapidamente foi a de que não poderia fazê-lo se o outro não pudesse fazer também. Se não, seria como chefe de Serviço que eu receberia estas crianças.  Minha primeira preocupação era de constituir uma equipe, muito pequena, de clínicos independente da formação universitária, em análise, querendo se arriscar como eu.
É preciso dizer que corremos o risco, sozinhos – é uma escolha. Minha ideia era de que tínhamos de um lado tudo o que acontecia na instituição, para além desta pequena equipe. Era muito diferente, não estávamos divididos entre psicólogos e médicos de um lado e enfermeiros de outro.  Era uma equipe pequena, todos em análise, que decidiram se arriscar nesta empreitada e haveria outras pessoas, dentre elas, enfermeiros e educadores que continuariam a fazer seu trabalho cotidiano com as crianças, sem estarem tomados por esta aposta.
Em dois ou três anos me dei conta de que as coisas não se passavam assim.  Tinha uma pequena coisa que era fundamental, que acontecia perto dos banheiros, com as faxineiras, com os porteiros perto das portas, então me dei conta de que era impossível trabalhar deste jeito. Foi aí que eu comecei a me dizer que era preciso dar início a uma “prática entre vários”. Foi uma constatação e não porque eu quis copiar o Courtil[3]. É isto que faz a força do RI3: não há duas instituições iguais.  A questão era que não podíamos continuar impondo a todo mundo trabalhar desta forma. Desde que constituímos a pequena equipe tudo ia bem, mas há diferenças entre o que se passa em nosso consultório e o que acontece na instituição.
A questão para mim era muito diferente da do Courtil. A partir do momento em que passamos de uma pequena equipe a uma em que todo mundo deveria ser considerado, precisava uma tomada de posição onde todos estivessem de acordo em se engajar nesta aposta. Não quis fazer um protocolo obrigatório onde todos deveriam seguir as regras.  A ideia era a de criar uma pequena instituição assim, deixando os outros profissionais do Hospital trabalharem como quisessem. 
Nesta pequena instituição cada um deveria fazer uma escolha decidida e se orientar em sua prática cotidiana com Freud e Lacan. São duas posições completamente diferentes. Na primeira posição trata-se de tentar incluir a psicanalise na instituição já existente. E a segunda, trata-se de fazer nascer uma instituição a partir da aposta da psicanálise.  Duas posições radicalmente diferentes. Porque se trazemos a psicanálise para uma Instituição, podemos encontrar pessoas que não desejam trabalhar assim. Não estou dizendo que não se possa fazer isto. Mas fazer nascer uma instituição a partir da psicanálise era partir de uma aposta de todos. Estava fora de questão ceder sobre esta aposta. Se isto não fosse possível, eu deixaria do cargo de chefe de Serviço.
Era o início, 1982. Este era um ponto essencial de diferença do Courtil onde eles trouxeram a psicanálise para dentro da instituição com sucesso. Não se trata de uma crítica de minha parte. Tratava-se, naquele momento, de uma escolha minha pessoal, eu não teria feito de outro modo. Não havia nenhuma intenção de não respeitar a quem não quisesse trabalhar desta forma, apenas não me interessava. Tratava-se de criar uma pequena instituição onde cada um se associava a cada um para trabalhar em sua clínica diária com Freud e Lacan. Era este o começo. Esta pequena unidade tornou muito agalmático com o tempo, diferentemente do seu início que era um escândalo. Isto só foi possível porque eu ocupava este lugar de chefe de Serviço. Minha experiência é a seguinte: se desse certo seria porque eu tivera sorte, se não, eu teria me enganado na aposta. 
Em todo caso, o pouco que posso explicar desta sorte, é que eles sempre respeitaram o que eu fazia porque isto partia da experiência. Não se tratava de uma aplicação religiosa da psicanálise. Longe de se tornar um sinônimo de desvio da psicanálise, era o coração da psicanálise na Escola. 




[1] Analista Membro de Escola, (AME)  da Escola da Causa Freudiana e da Associação Mundial de Psicanálise, psiquiatra chefe de Serviço de crianças e adolescentes do hospital Ville Ervrad
[2] Membro EBP|AMP -  CAPSi Teresópolis RJ.
[3] Le Courtil trata-se de um projeto de acolhimento e acompanhamento para crianças e adolescentyes num serviço residencial ou de acolhimento dia orinetadoi pela psicanalise, por Freud, Lacan e Jacques-Allain Miller. O Courtil foi fundado pelo Dr Alexandre Stevens há 30 anos.
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros: Trata-se de uma instituição Belga, em Tournai, na fronteira com a França. Foi uma espécie de CAPSi e transformado  a partir da direção de alguns psicanalistas que puderam trabalhar ali com a orientação lacaniana da psicanálise. RI3 é uma rede que reúne varias instituições do Campo freudiano que trabalham com a orientação da psicanálise lacaniana do Campo freudiano: l’Antenne 110 Bruxelas, o Courtil de Leers-Nord, du CTR de Nonette à Clermont-Ferrand et de Mish’olim de Tel-Aviv.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública Carta aberta ao Fantástico e ao Dr. Dráuzio Varella sobre a série Autismo: Universo Particular

São Paulo, 21 de setembro de 2013.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Carta aberta ao Fantástico e ao Dr. Dráuzio Varella sobre a série Autismo: Universo Particular
            Nós, integrantes do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), que reúne profissionais (psiquiatras, psicólogos,  pediatras, neurologistas, psicanalistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos, psicopedagogos) que trabalham no campo da saúde mental inseridos em diversas instituições clínicas e acadêmicas disseminadas pelo Brasil, na rede pública e privada, assistimos a série “Autismo: Universo Particular”, apresentada pelo dr. Dráuzio Varella no Fantástico, e vimos, por meio desta, apontar o que consideramos como  faltas éticas e desconhecimentos científicos cometidos pelo programa.
Buscamos assim contribuir para com o esclarecimento à população, favorecendo que  programas jornalísticos e de divulgação científica possam trazer informações sérias e efetivas sobre o autismo e seu tratamento, uma vez que se trata de um tema da maior relevância para a saúde pública atual.
            Seguem alguns pontos a destacar:
1.            Da forma como foi conduzida, a série praticamente posiciona-se contra o SUS; ao dizer que “nada funciona”, resulta em difamação e em uma demonstração de total desconhecimento das inúmeras experiências de sucesso no tratamento de pessoas com autismo nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros órgãos da rede pública de saúde e  nas instituições a ele conveniadas  que têm produzido relevantes  trabalhos nas terapias de autismo  no Brasil.
Isso acontece em um momento crucial para o tratamento das pessoas com autismo e seus familiares, já que estão sendo definidas políticas públicas fundamentais destinadas a nortear o tratamento e o diagnóstico nos equipamentos do SUS (como as lançadas no documento Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde/SUS - Ministério da Saúde, abril, 2013),
2.            A série apresentou uma visão reducionista do autismo, especialmente quanto ao seu diagnóstico e tratamento, ignorando as  contribuições clínicas existentes, entre elas, as advindas da concepção psicanalítica em equipe interdisciplinar desenvolvidas há mais de  70 anos.

3.            A série  demonstrou desconhecimento acerca  dos relevantes efeitos clínicos da detecção e intervenção precoce ao apresentar o autismo como “incurável”. Os progressos científicos produzidos interdisciplinarmente no campo da primeira infância no diálogo entre psicanálise e neurociência têm revelado que  os primeiros meses de vida se caracterizam por uma extrema plasticidade neuronal, configurando possibilidades de recuperação orgânica. Os progressos científicos demonstram também que não nascemos com nosso organismo pronto, já que tanto a formação da interconexão neuronal quanto a manifestação de nossa carga genética dependem de fatores ambientais (epigenéticos), entre eles a relação com as outras pessoas  como fator fundamental para os humanos.
4.            A série é questionável no que se refere à exposição das crianças. Para um autista, esse nível de invasão recrudesce sua posição de exclusão, e nada justifica tal atitude.
É lamentável que um programa tão assistido e com um tema que exige tanto esclarecimento público não tenha sido capaz de apresentar  os aspectos básicos para a  abordagem de um problema de saúde premente e complexo como o autismo. Ao privar o telespectador de informações valiosas e necessárias – e conduzi-lo a uma visão comprometida e empobrecedora –, o programa produz ainda mais sofrimento nas famílias.
Sobre o diagnóstico precoce
A importância do diagnóstico precoce foi colocada de maneira distorcida pelo programa. Não há dúvidas em relação à diferença que o diagnóstico precoce pode produzir no tratamento, favorecendo-o, e toda a comunidade científica está de acordo em relação a isso. Mas considerar, como foi feito no programa, que nos Estados Unidos o estado da arte está mais evoluído porque o diagnóstico de autismo é realizado antes dos três anos é um desserviço. Documento produzido pelo Ministério da Saúde em abril deste ano – Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde/SUS – e que segue recomendação da Organização Mundial de Saúde, afirma (pág. 50): “Por apresentarem mais sensibilidade do que especificidade é oficialmente indicado que o diagnóstico definitivo de Transtorno do Espectro Autista (TEA) seja fechado a partir dos três anos, o que não desfaz o interesse da avaliação e da intervenção o mais precoce possível, para minimizar o comprometimento global da criança (Bursztejn et al, 2007, 2009; Shanti, 2008, Braten, 1988, Lotter, 1996)”. Antes dessa idade não se deve fechar o diagnóstico, pois ainda se trata de um bebê em pleno processo de constituição.
Na página 54, o mesmo documento  afirma: “Embora os primeiros sinais de Transtornos do Espectro do Autismo se manifestem antes dos três anos, é a partir dessa idade que um diagnóstico seguro e preciso pode ser feito, pois os riscos de uma identificação equivocada (o chamado falso-positivo) são menores.” Até lá, trabalha-se com critérios cientificamente comprovados (por pesquisas referendadas e validadas no circuito acadêmico) de Risco Psíquico para o Desenvolvimento e Sofrimento.
            Promover e propagandear em um programa televisivo de cunho jornalístico o diagnóstico fechado de uma patologia antes do tempo recomendado pode ter o efeito de que se deixe de investir em uma possibilidade de mudança. Essa é uma postura irresponsável por produzir efeitos iatrogênicos, para bebês e crianças que ainda estão em pleno processo de constituição e que, portanto, não têm um destino definido, levando ao risco de produzir uma epidemia de autismo
Trabalho clínico  interdisciplinar de referencial psicanalítico
Outro aspecto que ficou muito aquém do desejável foi a necessidade de uma discussão interdisciplinar dos casos e a consideração da multiplicidade de fatores correlacionados ao autismo que não se limitam a aspectos  orgânicos (de genética, lesões ou deficiências), levando o telespectador  a uma visão reducionista  dando a entender  que no autismo haveria uma única causa em jogo e uma única forma de tratamento:  a terapia comportamental, como caminho autossuficiente.
Para tratar de crianças e adultos com autismo, não basta descrever que observam o mundo de forma fragmentada; é preciso dizer como é possível ajudá-los a encontrar saídas para esse estado. Tentar “ensinar” sentimentos, como observamos na série, também não resolve. É preciso ajudar o paciente a fazer uso das palavras a fim de representar seus afetos para poder  compartilhá-los com as  outras pessoas.
O trabalho clínico interdisciplinar de referencial psicanalítico abre inúmeras possibilidades para que cada pessoa com autismo possa construir laços sociais, partilhar a celebração de viver e contribuir para a sociedade. Também permite que os pais, muitas vezes desalentados pelo isolamento de seus filhos, possam ampliar a partir das intervençoes terapêuticas os momentos de troca, contato e reconhecimento mútuo. Favorece o processo de crescimento, desenvolvimento e constituição psíquica do filho e possibilita que as aquisições de linguagem, aprendizagem e psicomotricidade sejam efetivas apropriações do filho com as quais ele possa circular socialmente (na familia ampliada, na escola, na cidade), não de um modo simplesmente adaptativo, mas guiado fundamentalmente pelos seus interesses singulares. Quando realizado com bebês, , permite intervir a tempo, reduzindo enormemente e, em alguns casos, possibilitando a  remissão de traços de evitação na relação com o outro.  
Questão educacional
No que tange à educação e escolarização, os integrantes do MPASP, a partir de inúmeras experiências clínicas de inclusão bem-sucedidas, ressaltam a importância de propiciar, sempre que for possível e benéfico para a criança, sua inclusão nas escolas regulares, ou seja, o diagnóstico de autismo não deve configurar per se indicação de escola especial, sob o risco de incorrer numa visão segregacionista.
Uma chance perdida
Pelo exposto acima, o Movimento Psicanálise Autismo e Saúde Pública (MPASP), do qual fazem parte cerca de 500 profissionais que atuam em mais de 100 instituições nacionais (públicas, privadas e não governamentais), considera que a série Autismo: Universo Particular foi um desserviço, uma chance perdida de alcançar maciçamente o público leigo com informação de qualidade. 
Mais lamentavel ainda é que a produção desse programa tenha ignorado  essas informações enviadas pelo MPASP, enquanto o programa ia ao ar, dispostos que estávamos e estamos a colaborar com a informação nesse âmbito e ampliar a visão reducionista exposta pelo programa.
O MPASP se coloca à disposição dos meios de comunicação para apresentar  caminhos possíveis de tratamento  que não se restringem a treinamentos e  possibilitam ampliar e viabilizar os modos singulares de ser das pessoas com autismo.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública/MPASP
Instituições participantes
Universidades:FEUSP,FMUSP, Grupo de estudo sobre a criança (e sua linguagem) na clínica psicanalítica – GECLIPS/UFUMG, IPUSP, PUC /RJ, Psicologia PUC /SP, Fono PUC/SP, UERJ, UFBA – ambulatório infanto-juvenil da Residência em Psicologia Clínica e Saúde Mental do Hospital Juliano Moreira/UFBA-SESAB, UFMG Laboratório de Estudos Clínicos da PUC Minas, UFPE, UFRJ, UFSM, UnB, Unesp Bauru, UNICAMP, Univ. Católica de Brasília, Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da UNIFESP, Centro de Referência da Infância e da Adolescência – CRIA/UNIFESP, DERDIC/PUCSP, Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG), UNIFOR. Instituições de Psicanálise: ALEPH – Escola de Psicanálise, Associação Psicanalítica de Curitiba- APC, Circulo Psicanalítico MG – CPMG, Círculo Psicanalítico de Pernambuco – CPP, EBP/SP ( escola brasileira de psicanálise), EBP/MG ( escola brasileira de psicanálise),  EBP/RJ  (escola brasileira de psicanálise), Escola Letra Freudiana, Espaço Moebius/BA, Laço Analítico, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil (EPFCL-Brasil), Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo (FCL-SP), Rede de Pesquisa sobre as Psicoses do FCL-São Paulo, Rede Brasil Psicanálise Infância/ FCL, IEPSI, Associação Psicanalítica de Porto Alegre -APPOA, Instituto APPOA, IPB ( instituto de psicanálise brasileiro), Intersecção Psicanalítica do Brasil, Grupo que estuda a clinica com bebês e as intervenções precoces da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Grupo de Estudos e Investigação dos TGD da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (SEDES), Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto SEDES, Departamento de Psicanálise de Crianças do Instituto SEDES, Curso de Psicossomática Psicanalítica do Instituto SEDES, Núcleo de Investigação Clínica Hans da Escola Letra Freudiana, Sigmund Freud Associação Psicanalítica/RS, GEP/Campinas, NEPPC/SP, Instituto da Família –IFA/SP, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Invenção Freudiana – Transmissão da Psicanálise. Centros de atendimentos não governamentais: Ateliê Espaço Terapêutico/RJ, Attenda/SP, Centro de Atendimento e Inclusão Social, CAIS/MG, Carretel – Clínica Interdisciplinar do Laço/SP, Carrossel/BA, Centro da Infância e Adolescência Maud Mannoni CIAMM, CERSAMI de Betim, Centro de Estudos, Pesquisa e Atendimento Global da Infância e Adolescência – CEPAGIA/Brasília/DF, Clínica Mauro Spinelli/SP, Clube/SP, CPPL – Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem de Recife – CPPL, Escola Trilha, ENFF, Espaço Escuta de Londrina, Espaço Palavra/SP, GEP-Campinas, Grupo Laço/SP, Grupo de Pesquisa CURUMIM do Instituto de Clínica Psicanalítica/RJ, Incere, Instituto de Estudo da Familia INEF, Insituto Langage, Instituto Viva Infância, LEPH/MG, Lugar de Vida, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, NIIPI/BA, NINAR – Núcleo de Estudos Psicanalíticos, NÓS – Equipe de Acompanhamento Terapêutico, Projetos Terapêuticos/SP, Trapézio/SP, Associação Espaço Vivo/RJ. Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae/SP. Centros de atendimentos do governo: Caps Pequeno Hans/RJ, Capsi Guarulhos/SP, Capsi-Ipiranga/SP, Capsi-Lapa/SP, Capsi Mauricio de Sousa/Pinel-RJ, Capsi Mooca/SP, CAPSI-Taboão/SP, CAPSI de Vitória, CARM/UFRJ, NASF Brasilandia/SP, NASF Guarani/SP, UBS Humberto Pasquale/SP, Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica – COMPP/SES-DF, Capsi COMPP/SES-DF, Capsi Campina Brande/PB. Associações:ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê, ABENEPI/Maceió, ABENEPI/RJ, ABENEPI/BSB, Associação Metroviária do Excepcional AME, Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, CRP/SP (conselho regional de psicologia). Hospitais: Centro Psíquico da Adolescência e Infância da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (CePAI/FHEMIG), CISAM/UPE – Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros – Universidade de Pernambuco, HCB (Hospital da Criança de Brasília), Serviço de psicossomática e saúde mental do Hospital Barão de Lucena -HBL/ Recife, Hospital Einstein, IEP/HSC Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital de Santa Catarina, Hospital Pinel, Hospital das Clínicas – Universidade de Pernambuco. Revista: Revista Mente e Cérebro. Grupo de pesquisa: PREAUT BRASIL, Grupo de pesquisa IRDI nas creches.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

3 Plano autismo - Carta aberta de Laurence VOLLIN - La main à l'oreille

3º plano autismo
Carta aberta de Laurence VOLLIN,
membro da associação La main à l’oreille,
à Sra. Carlotti,
ministra encarregada das relações sociais e da saúde,
à propósito do terceiro plano autismo

Sra. Ministra
Eu sou mãe de uma jovem de quinze anos. São diversas as suas manifestações da síndrome do autismo que dão origem a uma situação de dependência e de incapacidades severas.
Desde que ela bateu, pela primeira vez, sua cabeça contra o armário, aos 2 anos de idade, à aquisição de uma capacidade de comunicação com os outros que facilita seu bem-estar, nossa filha passou por fases de intensa violência (automutilação, defenestração).
Se hoje eu me permito lhe escrever é por causa da proposta do terceiro plano autismo que nos ameaça gravemente por contradizer tudo o que pudemos construir em nossa família e nas diferentes instituições que cuidaram de minha filha.
Ao longo de quinze anos, constatamos que não existia nenhum método que pudesse adaptá-la. Graças à benevolência dos educadores que asseguraram seus cuidados, nós exploramos, transpusemos, compusemos as diferentes ferramentas que tínhamos, favorecendo, assim, um dispositivo sob medida que permitiu que nossa filha evoluísse com uma relativa serenidade.
Nos períodos de grande dificuldade ligada a angústias instransponíveis, a  abordagem psicanalítica nos encorajou a adotar atitudes próprias a ela, a desenvolver outra linguagem, abrindo espaços sem constrangimento algum; não lhe impúnhamos nada. Permanecendo apenas na escuta do que ela nos propunha, esta postura favoreceu um apaziguamento importante. Em alguns momentos, ela se mostrava disponível aos procedimentos educativos que favoreciam a aquisição de alguns conteúdos que lhe auxiliavam em sua autonomia ligada a algumas demandas. São todas estas abordagens, métodos, a riqueza de uma escolha que nós desejamos as mais variados, que dinamizam nosso cotidiano.
Nada foi perfeitamente adquirido. A extrema complexidade e a diversidade dos sintomas autísticos ligados à singularidade de nossa filha fazem o que se aplica hoje, com alegria, e serão revistos em um mês, um ano, como saberemos? Nós precisamos estar à escuta do surgimento destas manifestações radicais, prontos para recolher o inesperado e o inacreditável. Cada passo, cada proposição de solução, cada chegada de uma nova maneira de fazer com seus sintomas é uma aposta, uma aposta de um encontro único que não pode ser medido.
A Senhora compreende facilmente que a rigidez de um método, o apoio de uma formação de educadores imposta sem alternativa nos levaria a um caminho sem saída colocando, imediatamente em risco o frágil equilíbrio de nossa filha e de nossa família.
Faz quinze anos que minha filha demonstra sua diferença. Meu trabalho psicanalítico me ajudou a aceitar, a me livrar deste desejo de normalidade que me sobrecarregava e me alegro com suas invenções, à escuta destas proposições. Este trabalho me permite liberar um espaço para criar, inventar, ajustar a minha posição de mãe, mãe de minha filha autista, mas também de seu irmão e de sua irmã. Posição de uma mulher em parte inteira, que me dá hoje esta disponibilidade de me dirigir à Sra.
Eu não reivindico um método, uma abordagem, e sim a liberdade de escolher o que mais convém à minha filha.

23 mai 2013
Laurence Vollin é autora do Quando a deficiência se mistura. Diário de uma vida deslocada (L’Harmattan, 2010) (cf. LQ n°203).


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Abertura ao singular. Por Silvia Sato.

Abertura ao singular

Silvia Sato[1]

            A experiência de supervisão numa Ama em Ribeirão Preto, cidade do interior de SP, tem me possibilitado construir um saber na Clínica do Autismo. Começo pela abertura da Instituição, através de alguns de seus profissionais, que demandaram supervisão com um desejo claro de saber sobre o fazer no dia-a-dia com seus alunos. A cada supervisão um encontro com o silencio ou barulho de cada autista através do que é contado pelos profissionais, onde se pode extrair de seus atos algo de seu gozo solitário.
            A abertura para a surpresa e a disponibilidade para o inesperado do lado dos profissionais, abre gradativamente para a escuta e leitura de um modo singular do aluno se colocar na relação com o outro na instituição. De modo diferente em cada profissional, seja psicopedagoga, diretora, psicóloga, educador, terapeuta ocupacional, assistente social, algumas situações vão sendo descobertas como presença de um ser que se satisfaz de maneira ímpar.
            No esconder atrás de uma vassoura quando brinca de esconde- esconde; no sorriso que diz bom dia, enquanto outro profissional por não ler em seu rosto, demanda e afirma que ele não deu bom dia; no aperto forte da mão do professor nos momentos em que não quer ir embora da Ama e que se surpreende com o aperto que o profissional dá de volta, fazendo- o soltar e ir; na introdução dos dinossauros na história coletiva que fala sobre a chapeuzinho vermelho; na atenção ao objeto autístico que um aluno carrega consigo em seu tempo na instituição como meio de apaziguar sua angústia. Entendo que é no "espaço de um lapso" que algo da criação do autista pode ser recolhido como algo que diga da forma como vai poder estar no mundo.
            O que encontro nessa instituição são crianças, adolescentes e adultos autistas ou não, que convivem numa rotina coletiva, que permite o espaço do um a um. O que escuto nas supervisões me fez supor que são "Autistas educados", já que experimentam um convívio nessa clínica- escola que se contrapõe ao isolamento que encontrávamos em tempos passados. Autistas que sofreram o efeito de estar no coletivo, diante sim de algumas demandas, mas ao mesmo tempo diante de um espaço que tenta permitir a distância necessária a cada um.
            Acolhidos por alguns profissionais que buscam rever seus conceitos e que sustentam uma prática atravessados pela psicanálise, que prezam pelo modo como cada um inventa seu estar no mundo, não sem considerar o laço social, mas sem estar fixado no ideal de educação ou de saúde mental. Apresentando uma disponibilidade para o novo e uma reconstrução do que é o autismo e do fazer com cada um.
            Entre uma prática pré- estabelecida e com uma orientação precisa, mas que exclui o falasser em seu modo singular de satisfação, e com a inclusão da psicanálise como orientador de uma prática, percebe- se uma tentativa de incluir algo desse vivo e inventivo que é a apropriação de um autista em seu mundo. Assim, acompanho profissionais que se agradam em localizar nas referências lacanianas, possibilidades de construir algum saber que favoreça um fazer que não apague o sujeito, o falasser. Prática que indica um certo desapego ao diagnostico pois o acento se encontra na construção do que fazer com o autista, incluindo- o na rotina da Ama, mas ao mesmo tempo, sem excluí-lo da possibilidade de inventar como se inserir nessa rotina...
            A escolha por oferecer a possibilidade de escolha por parte do autista, parece se sustentar numa escuta que considera além da fala o ato e que ao manter uma distância dentro do convívio, acolhe a defesa de cada um ao se manter afastado dentro do que é a sua medida. Como escutei num relato onde uma menina autista afirma: "Faço parte da escola, mas não faço parte do grupo"
            Acolher a distância necessária a cada um e a forma de inserção possível a cada um considera que assim como as mulheres, o autista não faz grupo, mas sim nos apresenta o ápice do um a um. Assim, penso a clinica do autismo como o ápice da singularidade, onde o laço possível com o Outro e o uso da linguagem permite numa apropriação singular um colocar- se no mundo a seu modo, com seu gozo que dificulta o laço social e com o qual se pode inventar ou talvez no caso do autismo caiba melhor dizer, criar uma maneira de fazer.
            Essa experiência tem me feito pensar que a psicanálise nos coloca a questão de como o autista pode se colocar menos defendido no mundo, na medida em que com o outro vai criando um "menos no real"[2]




[1] Psicanalista, membro da EBP/AMP, supervisora da AMA-RP
[2] Barros, MRCR: A questão do autismo, in Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana, EBP, Scriptum Livros, BH, 2012.

sexta-feira, 17 de maio de 2013


Entrevista de Ivan Ruiz
* Entrevista traduzida a partir do site da Associação La main à loreille. Ela pode ser encontrada no endereço abaixo:


Três perguntas a Ivan Ruiz

Entrevista publicada na Lettre Mensuelle N°314 da ECF (École de la Cause Freudienne)

Armelle Gaydon : Ivan Ruiz, você é autor e co-diretor do filme DAutres voix. Un autre regard sur lautisme (Outras vozes. Um outro olhar sobre o autismo). Como esse filme nasceu ?

Ivan Ruiz: O filme nasceu em um momento bastante concreto quando há três anos na Espanha e especificamente na Catalônia surgiram tentativas de recusar a presença da psicanálise no tratamento do autismo. Após um forum e iniciativas de associações de pais e de profissionais para defender o discurso analítico e aquilo que a psicanálise sustenta em relação ao autismo, eu pensei que o audio-visual nos permitiria ir mais longe que a apresentação, o caso clínico.

AG: Por que e a partir de qual lugar você gostaria de falar do autismo?

IR: Minha experiência do autismo com a psicanálise remonta aos primeiros encontros feitos em estágio após meus estudos como psicólogo, em Courtil, um estabelecimento que acolhe crianças e adolescentes. Em seguida, houve o encontro com o autismo do meu filho, atualmente com 7 anos, que transtornou minha vida. Eu pensei que eu poderia fazer um filme dando a palavra aos pais, aos psicanalistas, mas principalmente aos próprios sujeitos autistas. Minha intenção era de lhes dar uma visibilidade. Como o título indica, há o olhar e a voz, objetos claramente em jogo no autismo.

AG: Ivan Ruiz, apreender uma reportagem sobre o real do autismo no lugar do analisante, isso muda o que?

IR: Esse filme foi uma maneira de transformar o traumatismo vivido em um objeto belo, onde a beleza seja apresentada. Eu queria que as pessoas falassem de seu encontro com o autismo. E para que isto pudesse ser escutado pelo público, colocar um véu que permita recebê-lo. Eu percebi, após a filmagem, que verdade esse filme não fala do autismo, mas da subjetividade de cada um. Mesmo não envolvidas pelo autismo, as pessoas saem comovidas, emocionadas. Isto foi um encontro. E a cena final com a dança e a música mostra tudo aquilo que se passa em uma relação terapêutica ou não, quando a subjetividade está implicada. A arte é diretamente envolvida, assim como o desejo e o engajamento fundamental de toda a equipe que fez desse, um projeto seu.  


Tradução: Luciana Castilho de Souza
Revisão: Tânia Abreu