São Paulo, 21 de
setembro de 2013.
Movimento
Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Carta
aberta ao Fantástico e ao Dr. Dráuzio Varella sobre a série Autismo: Universo
Particular
Nós, integrantes do Movimento
Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), que reúne profissionais
(psiquiatras, psicólogos, pediatras,
neurologistas, psicanalistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, acompanhantes
terapêuticos, psicopedagogos) que trabalham no campo da saúde mental inseridos
em diversas instituições clínicas e acadêmicas disseminadas pelo Brasil, na
rede pública e privada, assistimos a série “Autismo: Universo Particular”,
apresentada pelo dr. Dráuzio Varella no Fantástico, e vimos, por meio desta,
apontar o que consideramos como faltas
éticas e desconhecimentos científicos cometidos pelo programa.
Buscamos assim contribuir para com o esclarecimento à população,
favorecendo que programas jornalísticos
e de divulgação científica possam trazer informações sérias e efetivas sobre o
autismo e seu tratamento, uma vez que se trata de um tema da maior relevância para
a saúde pública atual.
Seguem alguns pontos a destacar:
1.
Da forma como foi conduzida, a
série praticamente posiciona-se contra o SUS; ao dizer que “nada funciona”, resulta
em difamação e em uma demonstração de total desconhecimento das inúmeras
experiências de sucesso no tratamento de pessoas com autismo nos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS) e outros órgãos da rede pública de saúde e nas instituições a ele conveniadas que têm produzido relevantes trabalhos nas terapias de autismo no Brasil.
Isso acontece em um momento crucial para o tratamento das pessoas com
autismo e seus familiares, já que estão sendo definidas políticas públicas
fundamentais destinadas a nortear o tratamento e o diagnóstico nos equipamentos
do SUS (como as lançadas no documento Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com
Transtorno do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial
do Sistema Único de Saúde/SUS - Ministério da Saúde, abril, 2013),
2.
A série apresentou uma visão
reducionista do autismo, especialmente quanto ao seu diagnóstico e tratamento, ignorando
as contribuições clínicas existentes,
entre elas, as advindas da concepção psicanalítica em equipe interdisciplinar desenvolvidas
há mais de 70 anos.
3.
A série demonstrou desconhecimento acerca dos relevantes efeitos clínicos da detecção e
intervenção precoce ao apresentar o autismo como “incurável”. Os progressos
científicos produzidos interdisciplinarmente no campo da primeira infância no diálogo
entre psicanálise e neurociência têm revelado que os primeiros meses de vida se caracterizam por
uma extrema plasticidade neuronal, configurando possibilidades de recuperação
orgânica. Os progressos científicos demonstram também que não nascemos com
nosso organismo pronto, já que tanto a formação da interconexão neuronal quanto
a manifestação de nossa carga genética dependem de fatores ambientais
(epigenéticos), entre eles a relação com as outras pessoas como fator fundamental para os humanos.
4.
A série é questionável no que
se refere à exposição das crianças. Para um autista, esse nível de invasão
recrudesce sua posição de exclusão, e nada justifica tal atitude.
É lamentável que um programa tão assistido e com um tema que exige tanto
esclarecimento público não tenha sido capaz de apresentar os aspectos básicos para a abordagem de um problema de saúde premente e
complexo como o autismo. Ao privar o telespectador de informações valiosas e
necessárias – e conduzi-lo a uma visão comprometida e empobrecedora –, o
programa produz ainda mais sofrimento nas famílias.
Sobre o
diagnóstico precoce
A importância do diagnóstico precoce foi colocada de maneira distorcida
pelo programa. Não há dúvidas em relação à diferença que o diagnóstico precoce
pode produzir no tratamento, favorecendo-o, e toda a comunidade científica está
de acordo em relação a isso. Mas considerar, como foi feito no programa, que
nos Estados Unidos o estado da arte está mais evoluído porque o diagnóstico de
autismo é realizado antes dos três anos é um desserviço. Documento produzido
pelo Ministério da Saúde em abril deste ano – Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com
Transtorno do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial
do Sistema Único de Saúde/SUS – e que segue
recomendação da Organização Mundial de Saúde, afirma (pág. 50): “Por apresentarem mais sensibilidade do que
especificidade é oficialmente indicado que o diagnóstico definitivo de
Transtorno do Espectro Autista (TEA) seja fechado a partir dos três anos, o
que não desfaz o interesse da avaliação e da intervenção o mais precoce
possível, para minimizar o comprometimento global da criança (Bursztejn et al,
2007, 2009; Shanti, 2008, Braten, 1988, Lotter, 1996)”. Antes dessa idade não
se deve fechar o diagnóstico, pois ainda se trata de um bebê em pleno processo
de constituição.
Na página 54, o mesmo documento afirma:
“Embora os primeiros sinais de Transtornos do Espectro do Autismo se manifestem
antes dos três anos, é a partir dessa idade que um diagnóstico seguro e preciso
pode ser feito, pois os riscos de uma identificação equivocada (o chamado
falso-positivo) são menores.” Até lá, trabalha-se com critérios cientificamente
comprovados (por pesquisas referendadas e validadas no circuito acadêmico) de Risco Psíquico para o Desenvolvimento e
Sofrimento.
Promover e propagandear
em um programa televisivo de cunho jornalístico o diagnóstico fechado de uma
patologia antes do tempo recomendado pode ter o efeito de que se deixe de
investir em uma possibilidade de mudança. Essa é uma postura irresponsável por
produzir efeitos iatrogênicos, para bebês e crianças que ainda estão em pleno
processo de constituição e que, portanto, não têm um destino definido, levando
ao risco de produzir uma epidemia de autismo
Trabalho
clínico interdisciplinar de referencial
psicanalítico
Outro
aspecto que ficou muito aquém do desejável foi a necessidade de uma discussão
interdisciplinar dos casos e a consideração da multiplicidade de fatores correlacionados
ao autismo que não se limitam a aspectos orgânicos (de genética, lesões ou
deficiências), levando o telespectador a
uma visão reducionista dando a
entender que no autismo haveria uma única
causa em jogo e uma única forma de tratamento: a terapia comportamental, como caminho autossuficiente.
Para tratar de crianças e adultos com autismo, não basta descrever que observam
o mundo de forma fragmentada; é preciso dizer como é possível ajudá-los a
encontrar saídas para esse estado. Tentar “ensinar” sentimentos, como
observamos na série, também não resolve. É preciso ajudar o paciente a fazer
uso das palavras a fim de representar seus afetos para poder compartilhá-los com as outras pessoas.
O trabalho clínico interdisciplinar de referencial psicanalítico abre
inúmeras possibilidades para que cada pessoa com autismo possa construir laços
sociais, partilhar a celebração de viver e contribuir para a sociedade. Também permite
que os pais, muitas vezes desalentados pelo isolamento de seus filhos, possam ampliar
a partir das intervençoes terapêuticas os momentos de troca, contato e
reconhecimento mútuo. Favorece o processo de crescimento, desenvolvimento e
constituição psíquica do filho e possibilita que as aquisições de linguagem,
aprendizagem e psicomotricidade sejam efetivas apropriações do filho com as
quais ele possa circular socialmente (na familia ampliada, na escola, na
cidade), não de um modo simplesmente adaptativo, mas guiado fundamentalmente
pelos seus interesses singulares. Quando realizado com bebês, , permite
intervir a tempo, reduzindo enormemente e, em alguns casos, possibilitando
a remissão de traços de evitação na
relação com o outro.
Questão
educacional
No que tange à educação e escolarização, os integrantes do MPASP, a
partir de inúmeras experiências clínicas de inclusão bem-sucedidas, ressaltam a
importância de propiciar, sempre que for possível e benéfico para a criança, sua
inclusão nas escolas regulares, ou seja, o diagnóstico de autismo não deve configurar
per se indicação de escola especial, sob
o risco de incorrer numa visão segregacionista.
Uma chance
perdida
Pelo exposto acima, o Movimento Psicanálise Autismo e Saúde Pública
(MPASP), do qual fazem parte cerca de 500 profissionais que atuam em mais de
100 instituições nacionais (públicas, privadas e não governamentais), considera
que a série Autismo: Universo Particular foi um desserviço, uma chance
perdida de alcançar maciçamente o público leigo com informação de qualidade.
Mais lamentavel ainda é que a produção desse programa tenha ignorado essas informações enviadas pelo MPASP,
enquanto o programa ia ao ar, dispostos que estávamos e estamos a colaborar com
a informação nesse âmbito e ampliar a visão reducionista exposta pelo programa.
O MPASP se coloca à disposição dos meios de comunicação para apresentar caminhos possíveis de tratamento que não se restringem a treinamentos e possibilitam ampliar e viabilizar os modos
singulares de ser das pessoas com autismo.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública/MPASP
Instituições
participantes
Universidades:FEUSP,FMUSP, Grupo de estudo sobre a criança (e sua linguagem) na
clínica psicanalítica – GECLIPS/UFUMG, IPUSP, PUC /RJ, Psicologia PUC /SP, Fono
PUC/SP, UERJ, UFBA – ambulatório infanto-juvenil da Residência em Psicologia
Clínica e Saúde Mental do Hospital Juliano Moreira/UFBA-SESAB, UFMG Laboratório
de Estudos Clínicos da PUC Minas, UFPE, UFRJ, UFSM, UnB, Unesp Bauru, UNICAMP,
Univ. Católica de Brasília, Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria
da UNIFESP, Centro de Referência da Infância e da Adolescência – CRIA/UNIFESP,
DERDIC/PUCSP, Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG), UNIFOR. Instituições de Psicanálise: ALEPH – Escola de
Psicanálise, Associação Psicanalítica de Curitiba- APC, Circulo Psicanalítico
MG – CPMG, Círculo Psicanalítico de Pernambuco – CPP, EBP/SP ( escola
brasileira de psicanálise), EBP/MG ( escola brasileira de psicanálise), EBP/RJ
(escola brasileira de psicanálise), Escola Letra Freudiana, Espaço
Moebius/BA, Laço Analítico, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
– Brasil (EPFCL-Brasil), Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo (FCL-SP), Rede de
Pesquisa sobre as Psicoses do FCL-São Paulo, Rede Brasil Psicanálise Infância/
FCL, IEPSI, Associação Psicanalítica de Porto Alegre -APPOA, Instituto APPOA,
IPB ( instituto de psicanálise brasileiro), Intersecção Psicanalítica do
Brasil, Grupo que estuda a clinica com bebês e as intervenções precoces da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Grupo de Estudos e
Investigação dos TGD da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo,
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (SEDES), Departamento
de Formação em Psicanálise do Instituto SEDES, Departamento de Psicanálise de
Crianças do Instituto SEDES, Curso de Psicossomática Psicanalítica do Instituto
SEDES, Núcleo de Investigação Clínica Hans da Escola Letra Freudiana, Sigmund
Freud Associação Psicanalítica/RS, GEP/Campinas, NEPPC/SP, Instituto da Família
–IFA/SP, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Invenção Freudiana –
Transmissão da Psicanálise. Centros de atendimentos não
governamentais: Ateliê Espaço Terapêutico/RJ, Attenda/SP, Centro de
Atendimento e Inclusão Social, CAIS/MG, Carretel – Clínica Interdisciplinar do
Laço/SP, Carrossel/BA, Centro da Infância e Adolescência Maud Mannoni CIAMM,
CERSAMI de Betim, Centro de Estudos, Pesquisa e Atendimento Global da Infância
e Adolescência – CEPAGIA/Brasília/DF, Clínica Mauro Spinelli/SP, Clube/SP, CPPL
– Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, Centro de Pesquisa em
Psicanálise e Linguagem de Recife – CPPL, Escola Trilha, ENFF, Espaço Escuta de
Londrina, Espaço Palavra/SP, GEP-Campinas, Grupo Laço/SP, Grupo de Pesquisa
CURUMIM do Instituto de Clínica Psicanalítica/RJ, Incere, Instituto de Estudo
da Familia INEF, Insituto Langage, Instituto Viva Infância, LEPH/MG, Lugar de
Vida, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, NIIPI/BA, NINAR – Núcleo de Estudos
Psicanalíticos, NÓS – Equipe de Acompanhamento Terapêutico, Projetos
Terapêuticos/SP, Trapézio/SP, Associação Espaço Vivo/RJ. Clínica Psicológica do
Instituto Sedes Sapientiae/SP. Centros de atendimentos do
governo: Caps Pequeno Hans/RJ, Capsi Guarulhos/SP,
Capsi-Ipiranga/SP, Capsi-Lapa/SP, Capsi Mauricio de Sousa/Pinel-RJ, Capsi
Mooca/SP, CAPSI-Taboão/SP, CAPSI de Vitória, CARM/UFRJ, NASF Brasilandia/SP,
NASF Guarani/SP, UBS Humberto Pasquale/SP, Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica
– COMPP/SES-DF, Capsi COMPP/SES-DF, Capsi Campina Brande/PB. Associações:ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos
sobre o Bebê, ABENEPI/Maceió, ABENEPI/RJ, ABENEPI/BSB, Associação Metroviária
do Excepcional AME, Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia
Fundamental, CRP/SP (conselho regional de psicologia). Hospitais: Centro Psíquico da Adolescência e Infância
da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (CePAI/FHEMIG), CISAM/UPE –
Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros – Universidade de Pernambuco, HCB
(Hospital da Criança de Brasília), Serviço de psicossomática e saúde mental do
Hospital Barão de Lucena -HBL/ Recife, Hospital Einstein, IEP/HSC Instituto de
Ensino e Pesquisa do Hospital de Santa Catarina, Hospital Pinel, Hospital das
Clínicas – Universidade de Pernambuco. Revista: Revista
Mente e Cérebro. Grupo de pesquisa: PREAUT BRASIL,
Grupo de pesquisa IRDI nas creches.
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