segunda-feira, 14 de abril de 2014

Entrevista com Silvia Tendlarz 

No dia 27 de novembro de 2013, o CIEN-Rio promoveu uma conversação inter-disciplinar sobre o tema do autismo, em torno de uma vinheta prática apresentada pelo laboratorio A criança entre a mulher e a mãe, com a participação de uma convidada: Silvia Tendlarz.

Doutora em Psicologia e em Psicanálise, AME da EOL, Membro da AMP e ECF, Silvia é responsável pela disciplina Autismo e Psicose na Infância (Faculdade de Psicologia - UBA) e pelo Departamento de Autismo e Psicose na Infância do Instituto Clínico de Buenos Aires - ICBA/EOL.

Nesta breve entrevista, ela responde questões cruciais a respeito do tratamento psicanalítico do sujeito autista.


Ana Martha Maia - Observando nos manuais de diagnóstico de transtornos mentais o paradoxal desaparecimento da psicose na infância e a ampliação dos critérios para o diagnóstico do autismo apresentado no DSM V como Transtorno do Espectro Autista gostaria de retomar com você (que participou do DR Debates 005) a distinção entre autismo e psicose, tão importante na direção do tratamento e na posição do analista e terapeutas que trabalham com estes sujeitos, em atendimentos individuais e/ou instituições. Que ferramentas nós dispomos hoje para o estabelecimento desta distinção?

Silvia Tendlarz - Durante os últimos anos, o trabalho da comunidade analítica se viu levado a apresentar o autismo como um funcionamento subjetivo singular. Isto permitiu estabelecer relações e diferenças entre o autismo e a psicose.

O autismo tem um início precoce, em geral até os dois ou três anos, e permanece como uma modalidade de funcionamento, mesmo que varie seu modo de relação com os objetos e os outros, na medida em que opera um  deslocamento de seu encapsulamento. Por outro lado, existem distintos momentos de desencadeamentos na psicose que vão desde a infância até a vida adulta, com momentos de aberturas e fechamentos, determinados por desencadeamentos e a construção de suplências, que dão contam de rupturas e descontinuidades.

O desencadeamento da psicose na primeira infância pode, às vezes, passar despercebido, até o aparecimento de alucinações e delírios. As mesmas contingências que enlaçam o discurso dos pais à emergência do isolamento autista são retomadas frente ao desencadeamento psicótico: nascimento de um irmão, mortes, mas com a característica do retorno alucinatório de vozes e fenômenos de inquietude e estranheza.

Por outro lado, a forma de apresentação do autismo e da psicose na primeira infância pode parecer similar, à primeira vista, ainda que se diferencie sob a transferência, pelo o que muitas vezes produz esta confusão diagnostica e leva a colocar que as crianças autistas podem ter uma saída pela psicose, enquanto que na realidade o funcionamento do autismo não varia ao longo do tempo, o que se diferencia da descontinuidade da psicose.

Isto nos permite dizer que o diagnóstico apressado de TGD ou de TEA, outra maneira de falar do autismo, em moda na atualidade, não conduz necessariamente a que as crianças recebam um tratamento adequado, mas a um diagnóstico massivo que perde de vista a singularidade das crianças que caem sob o peso dessa classificação e que confunde a angústia dos pais.

A partir de uma perspectiva psicanalítica, Éric Laurent assinala as diferentes formas de retorno do gozo: no Outro mal, na paranóia; no corpo, na esquizofrenia, produzindo sua fragmentação; na borda, no autismo, com o que constrói seu encapsulamento.

Não há corpo no autismo, em seu lugar se constitui uma neo-borda através do encapsulamento autista, que não se confunde com a superfície corporal. Isso se diferencia da fragmentação corporal, a mortificação e as ideias hipocondríacas da esquizofrenia, ou os fenômenos de vacilação imaginária, de duplicações e tratamentos delirantes da paranóia.

No autismo, não há imagem especular, nem delírio, a não ser um duplo real no que se sustenta e que, muitas vezes, dá lugar às intervenções, em seu tratamento. O analista no lugar do duplo real pode conseguir entrar em contato com a criança. As repetições, as condutas estereotipadas e o uso da linguagem do autismo expressa a iteração da letra, a busca do mesmo que tanto o alivia.

Na psicose, os transtornos de linguagem dão contam da cadeia quebrada, efeito da foraclusão do Nome do Pai e do buraco na significação fálica: fenômenos elementares, automatismo mental, construção delirante e alucinações auditivas, como assim também a positivação do objeto voz e o olhar.

Os diagnósticos puramente descritivos e fenomênicos podem levar à confusões. É por isso que, a partir da orientação psicanalítica, os diagnósticos são estabelecidos no dispositivo, sem reduzir o sujeito a uma classe, mas guardando sempre a orientação de buscar levar adiante o tratamento da criança de modo tal que encontre uma saída.

Ana Martha Maia   - Em seu recente livro Qué es el autismo? (Coleccion Diva, 2013), de co-autoria com Patricio Alvarez Bayón, a expressão laço sutil define o primeiro laço entre terapeuta e sujeito autista e me fez lembrar do  inicial contato pouco profundo que a menina Marie-Françoise estabeleceu com Rosine Lefort, que descreveu da seguinte forma a posição da analista, neste caso: entre uma passividade na não intervenção e a presença protegida. Considero muito precisa esta expressão que sugeriram e gostaria que você a desenvolvesse para os leitores de nosso Blog.

Silvia Tendlarz Para a criança autista, a presença do Outro, sua atividade, pode se tornar intrusiva. É por isso que surge a pergunta de como intervir sem produzir uma recusa da criança, como se aproximar dele sem que resulte em algo perturbador. Rosine coloca, então, a necessidade de se conservar uma posição passiva de analista para permitir a emergência subjetiva.

A própria Donna Williams dá um exemplo disso, em um de seus testemunhos, quando ao trabalhar com um jovem autista, a partir de sua própria experiência pessoal, trata de estar junto dele, sem estar, de modo tal que o permite encontrar sua maneira de aparecer, sem ficar perturbadora.

Geralmente se considera que o sujeito autista não tem nenhum laço social com o outro e que manifesta uma profunda recusa. Este corte na interação social forma parte de sua descrição. No entanto, a experiência clínica demonstra que as crianças guardam muitas vezes uma direção especial para seus pais ou para aqueles que conseguem entrar em seu encapsulamento autista, ainda conservando seu funcionamento singular. O uso da presença de um "laço sutil" constitui a base de possibilidade do trabalho analítico, quer seja em uma instituição, ou no consultório do analista.

Nas trocas que vão sendo estabelecidas "sutilmente" entre a criança e o analista, em um momento, o analista consegue se introduzir em seu encapsulamento de tal modo que produz um deslocamento que amplia o mundo da criança.

Ana Martha Maia - Rosine conclui que não existe Outro para Marie-Françoise: há grito, mas ausência de apelo, o que nos remete à leitura de Lacan sobre o caso Dick, de Melanie Klein. Se não há Outro, como o corpo se constitui para o sujeito, no autismo? Laurent fala de retorno de gozo na borda, de neo-borda, e surge a pergunta: qual a especificidade do uso do corpo do analista/terapeuta na clínica do autismo?

Silvia Tendlarz - Não há constituição do corpo no autismo, todavia, podemos examinar seu uso. Éric Laurent afirma que a falta de corpo do sujeito autista já é uma relação com o corpo, posto que possui uma relação particular com seus orifícios e com o uso do espaço. Esta colocação tem como consequências: primeiro, o sujeito autista é um "ser sem buraco" e sem corpo, por causa da "foraclusão do buraco", com um retorno de gozo sobre a borda que constitui o encapsulamento autista; segundo, o acontecimento de corpo essencial do autismo é a iteração do Um que implica em uma "solidão semântica", iteração da letra sem corpo, sem constituição do Outro, sem o circuito pulsional e, por isso, sem objeto e sem imagem especular.

A metáfora do encapsulamento autista é retomada na orientação lacaniana como um tratamento particular da falta e do buraco. Laurent o coloca como uma "neo-borda", quase corporal, infranqueável, mas separável, que não corresponde à superfície do corpo, nem a uma carapaça dura, mas ao particular retorno do gozo sobre a borda. Esta neo-borda se modifica no transcurso do tratamento analítico e tem suas consequências na relação da criança com seu corpo e com o uso do espaço. E mais, não está completamente fechado, porque pode incluir o objeto autista, objetos de trocas e também pessoas: pais, irmãos e, inclusive, o analista, na transferência.

Tanto Maleval, quanto Laurent, colocam que o duplo real, no qual se apóia a criança para a constituição de seu mundo, forma parte desta borda. Inclusive, Maleval inclui as ilhas de competência. Por outro lado, as modalidades de encapsulamento variam, uma vez que vão da profunda recusa ao Outro, até a inclusão de pessoas e objetos.





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