Entrevista com Silvia Tendlarz
No
dia 27 de novembro de 2013, o CIEN-Rio promoveu uma conversação inter-disciplinar
sobre o tema do autismo, em torno de uma vinheta prática apresentada pelo laboratorio “A criança entre a mulher e a
mãe”, com a participação de uma convidada:
Silvia Tendlarz.
Doutora
em Psicologia e em Psicanálise, AME da EOL, Membro da AMP e ECF, Silvia é responsável pela disciplina
Autismo e Psicose na Infância (Faculdade de Psicologia - UBA) e pelo
Departamento de Autismo e Psicose na Infância do Instituto Clínico de Buenos Aires
- ICBA/EOL.
Nesta
breve entrevista, ela responde questões cruciais a respeito do tratamento psicanalítico do sujeito
autista.
Ana Martha Maia - Observando nos manuais de diagnóstico de transtornos
mentais o paradoxal desaparecimento da “psicose na infância” e a ampliação dos critérios para o diagnóstico do autismo – apresentado no DSM V
como “Transtorno do
Espectro Autista”
– gostaria de retomar
com você
(que participou do DR Debates 005) a distinção entre autismo e psicose, tão importante na direção do tratamento e na
posição do analista e
terapeutas que trabalham com estes sujeitos, em atendimentos individuais e/ou
instituições.
Que ferramentas nós
dispomos hoje para o estabelecimento desta distinção?
Silvia Tendlarz -
Durante os últimos anos, o trabalho da
comunidade analítica se viu levado a apresentar
o autismo como um funcionamento subjetivo singular. Isto permitiu estabelecer
relações e diferenças entre o autismo e a psicose.
O autismo
tem um início precoce, em geral até os dois ou três anos, e
permanece como uma modalidade de funcionamento, mesmo que varie seu modo de
relação com os objetos e os outros,
na medida em que opera um deslocamento
de seu encapsulamento. Por outro lado, existem distintos momentos de
desencadeamentos na psicose que vão desde a
infância até a vida adulta, com momentos de aberturas e fechamentos,
determinados por desencadeamentos e a construção de suplências, que dão contam de
rupturas e descontinuidades.
O
desencadeamento da psicose na primeira infância pode, às vezes, passar despercebido, até o aparecimento de alucinações e delírios. As mesmas contingências que
enlaçam o discurso dos pais à emergência do
isolamento autista são retomadas
frente ao desencadeamento psicótico: nascimento
de um irmão, mortes, mas com a característica do retorno alucinatório de vozes
e fenômenos de inquietude e
estranheza.
Por outro
lado, a forma de apresentação do autismo
e da psicose na primeira infância pode
parecer similar, à primeira vista, ainda que se
diferencie sob a transferência, pelo o
que muitas vezes produz esta confusão
diagnostica e leva a colocar que as crianças autistas
podem ter uma saída pela psicose, enquanto que
na realidade o funcionamento do autismo não varia ao
longo do tempo, o que se diferencia da descontinuidade da psicose.
Isto nos
permite dizer que o diagnóstico
apressado de TGD ou de TEA, outra maneira de falar do autismo, em moda na
atualidade, não conduz necessariamente a que
as crianças recebam um tratamento
adequado, mas a um diagnóstico
massivo que perde de vista a singularidade das crianças que caem sob o peso dessa classificação e que confunde a angústia dos
pais.
A partir de
uma perspectiva psicanalítica, Éric Laurent assinala as diferentes formas de retorno do gozo:
no Outro mal, na paranóia; no
corpo, na esquizofrenia, produzindo sua fragmentação; na borda,
no autismo, com o que constrói seu
encapsulamento.
Não há corpo no
autismo, em seu lugar se constitui uma neo-borda através do encapsulamento autista, que não se confunde com a superfície
corporal. Isso se diferencia da fragmentação corporal,
a mortificação e as ideias hipocondríacas da esquizofrenia, ou os fenômenos de vacilação imaginária, de duplicações e
tratamentos delirantes da paranóia.
No autismo, não há imagem
especular, nem delírio, a não ser um duplo real no que se sustenta e que, muitas vezes,
dá lugar às intervenções, em seu tratamento. O analista no lugar do duplo real
pode conseguir entrar em contato com a criança. As repetições, as condutas estereotipadas e o uso da linguagem do
autismo expressa a “iteração” da letra, a
busca do mesmo que tanto o alivia.
Na psicose,
os transtornos de linguagem dão contam da “cadeia quebrada”, efeito da
foraclusão do Nome do Pai e do buraco na
significação fálica: fenômenos
elementares, automatismo mental, construção delirante
e alucinações auditivas, como assim também a positivação do objeto
voz e o olhar.
Os diagnósticos puramente descritivos e fenomênicos podem levar à confusões. É por isso
que, a partir da orientação psicanalítica, os diagnósticos são estabelecidos no dispositivo, sem reduzir o sujeito a uma
classe, mas guardando sempre a orientação de buscar
levar adiante o tratamento da criança de modo
tal que encontre uma saída.
Ana Martha Maia - Em seu recente livro “Qué es el autismo?” (Coleccion Diva, 2013), de co-autoria
com Patricio Alvarez Bayón, a expressão “laço sutil” define o primeiro laço entre terapeuta e
sujeito autista e me fez lembrar do inicial “contato pouco profundo” que a menina Marie-Françoise estabeleceu com
Rosine Lefort, que descreveu da seguinte forma a posição da analista, neste caso: entre uma
passividade na “não intervenção” e a presença protegida.
Considero muito precisa esta expressão que sugeriram e gostaria que você a desenvolvesse para
os leitores de nosso Blog.
Silvia Tendlarz
– Para a criança autista, a presença do Outro, sua
atividade, pode se tornar intrusiva. É por isso que surge a pergunta de como
intervir sem produzir uma recusa da criança, como se aproximar dele sem que
resulte em algo perturbador. Rosine coloca, então, a necessidade de se conservar uma
posição passiva de analista
para permitir a emergência subjetiva.
A
própria Donna Williams dá um exemplo disso, em
um de seus testemunhos, quando ao trabalhar com um jovem autista, a partir de
sua própria
experiência
pessoal, trata de estar junto dele, sem estar, de modo tal que o permite
encontrar sua maneira de aparecer, sem ficar perturbadora.
Geralmente
se considera que o sujeito autista não tem nenhum laço social com o outro e que manifesta uma
profunda recusa. Este corte na interação social forma parte de sua descrição. No entanto, a
experiência
clínica demonstra que as
crianças guardam muitas
vezes uma direção
especial para seus pais ou para aqueles que conseguem entrar em seu
encapsulamento autista, ainda conservando seu funcionamento singular. O uso da
presença
de um "laço
sutil" constitui a base de possibilidade do trabalho analítico, quer seja em
uma instituição,
ou no consultório
do analista.
Nas
trocas que vão
sendo estabelecidas "sutilmente" entre a criança e o analista, em um
momento, o analista consegue se introduzir em seu encapsulamento de tal modo
que produz um deslocamento que amplia o mundo da criança.
Ana Martha Maia - Rosine conclui que não existe Outro para
Marie-Françoise:
há grito, mas ausência de apelo, o que
nos remete à
leitura de Lacan sobre o caso Dick, de Melanie Klein. Se não há Outro, como o corpo
se constitui para o sujeito, no autismo? Laurent fala de retorno de gozo na
borda, de neo-borda, e surge a pergunta: qual a especificidade do uso do corpo
do analista/terapeuta na clínica do autismo?
Silvia Tendlarz - Não há constituição do corpo
no autismo, todavia, podemos examinar seu uso. Éric Laurent
afirma que a falta de corpo do sujeito autista já é uma relação com o
corpo, posto que possui uma relação particular
com seus orifícios e com o uso do espaço. Esta colocação tem como
consequências: primeiro, o sujeito
autista é um "ser sem buraco"
e sem corpo, por causa da "foraclusão do
buraco", com um retorno de gozo sobre a borda que constitui o
encapsulamento autista; segundo, o acontecimento de corpo essencial do autismo é a iteração do Um que
implica em uma "solidão semântica", iteração da letra
sem corpo, sem constituição do Outro,
sem o circuito pulsional e, por isso, sem objeto e sem imagem especular.
A metáfora do encapsulamento autista é retomada na orientação lacaniana
como um tratamento particular da falta e do buraco. Laurent o coloca como uma
"neo-borda", quase corporal, infranqueável, mas
separável, que não corresponde à superfície do corpo, nem a uma carapaça dura, mas ao particular retorno do gozo sobre a borda.
Esta neo-borda se modifica no transcurso do tratamento analítico e tem suas consequências na
relação da criança com seu corpo e com o uso do espaço. E mais, não está completamente fechado, porque pode incluir o objeto
autista, objetos de trocas e também pessoas:
pais, irmãos e, inclusive, o analista, na
transferência.
Tanto
Maleval, quanto Laurent, colocam que o duplo real, no qual se apóia a criança para a
constituição de seu mundo, forma parte
desta borda. Inclusive, Maleval inclui as ilhas de competência. Por outro lado, as modalidades de encapsulamento
variam, uma vez que vão da
profunda recusa ao Outro, até a inclusão de pessoas e objetos.
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