O saber extraído das autobiografias de autistas é objeto de teorização de grupos de pesquisa e de autores internacionalmente renomados, como Rosine e Robert Lefort, Eric Laurent, Jean-Claude Maleval, dentre muitos outros.
Os relatos autobiográficos começam com Donna Williams, uma jovem australiana, autista de alto rendimento, que pôde, através da escrita, encontrar uma forma muito singular de estar no mundo, de falar sobre o autismo e de ajudar a muitos autistas a compreenderem melhor o que se passa dentro de si. Compreender um pouco o funcionamento autístico, em alguns casos, possibilita um apaziguamento frente às estranhezas vividas e aos rechaços tão presentes nas relações sociais. Compreender, saber-se singular, mas não único, pode ajudar a minimizar o isolamento autístico e, talvez, a diminuir a distância protetora estabelecida entre o sujeito autista e o meio social. Donna Williams ajudou realmente a inúmeros. E segue, mesmo depois de sua partida, contribuindo muitíssimo.
Seu primeiro livro é Nobody Nowhere – The remarkable autobiography of an autist girl (publicado no Brasil com o título Meu Mundo Misterioso). Outras autobiografias vieram em seguida e continuam sendo publicadas. Atualmente, são inúmeras. Igualmente, os pais, resolveram se debruçar sobre as letras e contar sobre o cotidiano com um filho autista, o impacto do diagnóstico, os medos, as angústias e os desafios.
A lista de livros, hoje, é imensa. O legado deixado por Donna Williams é incalculável, sobretudo, para os que precisam se afastar das hipóteses sobre o autismo baseadas em evidências comportamentais, neurológicas, genéticas, etc, para mergulharem num universo de não saber e de a descobrir, trazido à luz pelos relatos que se seguiram aos dela.
Tendo podido me dedicar mais recentemente à sequencia Nobody Nowhere – The remarkable autobiography of an autist girl e Somebody Somewhere – Breaking free from the world of autism, trago aqui uma pequena introdução ao mundo de Donna Williams como uma forma de homenageá-la pela sua passagem em 2017.
Você vai ler Donna Williams. Se é o primeiro contato com ela, saiba: Donna Williams se abre em seus textos, e revela a sua angústia em fazê-lo. Se já leu Nobody Nowhere, deve ter se impactado com a forma contundente com que ela nos expõe seu “o mundo” cru e violento, que exigiu dela recursos de defesa autística para sobreviver, fechando-se no que ela criou com “meu mundo”. Ela nos conta detalhadamente no segundo livro - Somebody Somewhere, sobre como foi, para ela, ter escrito o primeiro, e você se surpreenderá com a mudança que aconteceu em Donna Williams e em sua vida após a publicação deste.
Somebody Somewhere foi escrito como um testemunho dos efeitos causados pela publicação de Nobody Nowhere. O real da perda do controle sobre seu mundo interior, suas palavras e suas garantias, fizeram com que Donna Williams, ao saber da publicação, tivesse querido poder queimar cada livro, antes que tudo se tornasse irremediavelmente público.
Nobody Nowhere é apresentado como a estória de duas batalhas: a batalha para ficar fora de ‘o mundo’ e a batalha para juntar-se a este; e é dedicado aos que a ajudaram a “dominar as sutilezas da comunicação”. Em Somebody Somewhere, desde a nota introdutória, ela deixa claro que se trata da “estória de alguém que recolheu os pedaços após a guerra”. Um verdadeiro “desarmamento” que, para um autista, representa uma ameaça real de estilhaçamento de suas defesas estrategicamente estruturadas para se proteger da invasão do mundo exterior. Donna Williams relata, em Somebody Somewhere, o desespero de ver exposto ao inimigo o seu mundo interior e os efeitos desta “contaminação por sua exposição”. Ela considera seu primeiro livro, um epitáfio, e o segundo, uma conquista de um sentido de vida, pois “funcionar não era mais uma boa troca para ‘viver’”.
Em Somebody Somewhere, fica evidente a conquista do sentimento de pertencimento que Donna Williams registra, também como efeito do real da publicação de Nobody Nowhere. Isto possibilitou a ela, buscar e ter bastante sucesso em diminuir o hiato entre sentimentos, sentido e pensamento.
Observem: Donna Williams distingue claramente “meu mundo” de “o mundo”, buscando, exaustivamente, uma forma de transitar entre estes, e aponta, num determinado momento do texto, “um mundo”, como uma forma singular de se colocar em “o mundo”, e um vislumbre de “nosso mundo”, alcançando o “simplesmente ser”. Donna Williams se empenha em adentrar o mundo dos sentidos, percorrendo um caminho desde o chamado “meu mundo”, para penetrar, embora temerosamente de início e decididamente ao final, “o mundo”, e tentando suportar o custo subjetivo que implica, para ela, envolver sentidos, sentimentos e afetos. A linguagem com sentidos é algo que frustra a catalogação e a sistematização, embora permanentemente buscadas por ela, num recuo ao isolamento autístico.
Donna Williams é especialista no idioma Inglês, estrutura e fonética, embora declare que, apesar disto, tenha “dificuldades com o uso da linguagem”. Tem um texto muitíssimo bem escrito dentro das regras gramaticais. Isto lhe permite fazer uso de diversos recursos semânticos – onomatopéias, comparações, como se a linguagem houvesse sido, por ela, incorporada. Olhando atentamente, o que poderia parecer metáfora, é comparação - uma figura de linguagem semelhante à metáfora, mas sem produzir o vazio de sentido substitutivo, característico desta. A comparação é possível pela descrição do pensar em imagens, que Donna Williams faz com perfeição (assim como o faz Temple Grandin e alguns outros autistas, por causa da relação estrutural com os signos). A impossibilidade de metaforizar nos é exemplificada na frase: “Se eu aprendesse algo enquanto eu estivesse de pé com uma mulher em uma cozinha e fosse verão, durante o dia, a lição não seria lembrada em uma situação semelhante se eu estivesse de pé com um homem em outra sala e fosse inverno e à noite”. A metáfora é uma figura de linguagem que exige um hiato de significação que só é permitido à articulação significante, pelo vazio de sentido que se instala entre um significante e outro, provocando, nesta figura, um efeito substitutivo. Isto me permite dizer: “Você vai ler Donna Williams”.
A onomatopeia (Tinkle, Toc, toc, Zzzz, Slap, Crunch, etc) muito presente no texto, é um exemplo muito claro de seu gozo verbal com os signos sonoros e do “eco do fato de que há um dizer”, que nos fala Lacan, quando conceitua pulsão, em seu Seminário sobre Joyce. Ela maneja escrita e espaços. Ela faz parágrafos, recua, sinaliza, acentua. É um texto pleno de símbolos e de ícones. Nobody Nowhere já trazia alguns, mas, em Somebody Somewhere, a profusão de signos é enorme.
O espelho segue sendo um fator importante como elemento de suporte à angústia frente a “o mundo” – “provavelmente, passei muitos anos na frente do espelho”. Ele atravessa a obra passando de “uma porta para o lugar do outro lado” onde encontra Carol, num mundo previsível e familiar, uma companhia e um refúgio; até chegar a ser um elemento do qual Donna Williams consegue alguma distância para entrar em “o mundo”. É fundamental observar o destino dado a seus duplos, Carol e Willie – em Nobody Nowhere figuram como formas de proteção e de adaptação social a “o mundo”; o recurso aos objetos Urso Orsi e Cão Viajante; e o que representa para ela o Grande Negro Nada – angústia gerada frente ao impossível encontro entre palavra e sentido.
As participações do Dr. Marek (e esposa) e dos Millers em auxiliá-la frente ao desafio de abrir-se para os sentidos e os sentimentos consequentes são cruciais para que Donna Williams chegue a exclamar: “Oh, meu Deus, eu ganhei um corpo!”. Outro ponto destacável é o que ela nos conta a respeito de sua relação com o corpo, com o semelhante, e as suas afirmações sobre a (as)sexualidade e o incurável no autismo – “o sistema”, que poderíamos traduzir como a necessidade permanente de inventar formas de se proteger contra a angústia, com o primado do signo. “A impenetrabilidade é a máxima segurança” – desta, não se pode abrir mão totalmente. “É tudo muito difícil lá fora”.
Somebody Somewhere é um testemunho fiel de como Donna Williams conseguiu “as chaves da porta de ‘o mundo’”.
Em 2017, aos 53 anos, Donna Williams ainda jovem, faleceu de câncer. Agradecemos a ela, por tudo o que pôde, com sua coragem ímpar em revelar seu mundo, nos ensinar sobre o autismo. Tudo o que hoje se pode saber e seguir pesquisando sobre o autismo se deve às revelações impressionantes que nos surgem em cada obra escrita por autores geniais como ela. A estes, nosso eterno reconhecimento.
Não é mais possível seguir uma linha de investigação sobre o tema do autismo sem o aprofundamento na leitura dos relatos autobiográficos, ou mesmo, relatos de pais e cuidadores de crianças autistas, sempre lembrando que a clínica se faz no caso a caso.
Janeiro de 2018
[1] Membro da Escola Brasileira de Psicanálise / Associação Mundial de Psicanálise, Coordenadora do PIPA (e rabiola) Vitória.
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