A psicanálise,
bastante viva: Uma entrevista com Eric Laurent
Eric
Laurent aceitou prestar-se ao jogo de questões e respostas sobre o tema de sua
última obra, A batalha do autismo,
publicada por Navarin em outubro de 2012.
Pergunta: O Sr escolhe um
vocabulário marcial para o título de sua obra – A Batalha do autismo (La bataille de l’autisme) –, a fim de
evocar os debates calorosos e os ataques contra a psicanálise que se seguiram,
notadamente pela proclamação pelos poderes públicos, no ano passado, do autismo
como uma grande causa nacional.
Se
ampliarmos o debate, o senhor estaria de acordo em dizer que o autismo como
“batalha” deve ser englobado em uma guerra mais geral, e, se a resposta for
sim, poderia nos precisar seu contorno?
Eric Laurent: Batalha, combate,
são palavras com as quais muitos pais de crianças autistas qualificam o
confronto cotidiano com as consequências do modo de ser e do sofrimento de suas
crianças. Retomei essas palavras para qualificar o confronto entre os
adversários da psicanálise e esses que alguns chamam, através de um neologismo
original, a “psiquiatria-psicanálise”, e nós, que desejamos propor uma
abordagem plural dos sujeitos autistas em sua diversidade.
Pergunta: A respeito
disso, o que pensar do paradigma cognitivo-comportamental, do qual até mesmo
alguns partidários, - como o psiquiatra Laurent Mottron, e também alguns
autistas de alto nível (não especialmente favoráveis à psicanálise) – colocam
em questão certos tipos de tratamentos inspirados nessas teorias, como ABA: podemos
considerar que esse paradigma e suas consequências clínicas fazem um sucesso na
Europa no momento mesmo em que ele perde um pouco de fôlego nos países
anglo-saxões (como o senhor tão bem nos explica na parte sobre as vibrantes
discussões em torno do DSM V)?
Eric
Laurent: Constato
que a via “Tudo TCC”, em particular isso que a equipe de Monttron chama “a
indústria ABA-Autismo”, provoca inúmeras oposições, por razões muito diferentes.
Há a oposição dos próprios usuários, os autistas de alto nível. Há a oposição
dos burocratas da saúde que não querem ser arruinados pelo custo dos
tratamentos individuais – ABA, especialmente proibitivos (60000 $ anuais por
tratamento). A Suécia renunciou a todo ABA para escolher tratamentos TCC mais
ecléticos e lights. Há também nossas
objeções, que se formulam contrariamente ainda. Esse momento de desilusão em
relação a isso que era um frenesi, deve nos permitir precisar melhor o tipo de
aprendizagens não estritamente repetitivas que nós sustentamos. Uma
aprendizagem que possa incluir a repetição e o jogo.
Pergunta: A questão do
diagnóstico do autismo. Por um lado o senhor não pensa que, em relação ao
movimento de extensão do espectro autístico, cujas questões o senhor mostra bem
em sua obra, temos o interesse em afinar nossas referências de modo a localizar
uma categoria operatória do autismo, ao que contribui sua teoria do “retorno do
gozo sobre a borda”? Por outro lado, nesse contexto, em que seria pertinente
manter o autismo sob a lógica da forclusão (o senhor evoca a “forclusão do
buraco” no autismo)?
Eric
Laurent: O que está em jogo é manter o que nós apreendemos
das relações da forclusão e do real em um campo que não se define pela
forclusão do nome do Pai. Nós não estamos mais no campo da psicose e, não
obstante, os modos operatórios do sujeito se parecem, se recobrem, se separam,
isso que fez o fundo das dificuldades do lugar da clínica do autismo.
O
ponto fundamental, entretanto, é que existem fenômenos clínicos no autismo que
não têm correspondência na psicose. Para resumir, tudo que vem da pura
repetição do UM, sem implicação do corpo ou do imaginário.
Pergunta: O autismo é um
significante que em sua escrita aparece sob uma dupla acepção: ele pode ser
considerado como o cavalo de Troia dos inimigos da psicanálise numa “batalha do
autismo”, mas se constitui também como um significante principal em nosso
campo, como uma categoria operatória que permite afinar o diagnóstico de
psicose.
Contudo,
nessa extensão do diagnóstico do autismo a partir dos critérios estatísticos do
DSM-IV, em que aparece então como uma denominação vaga que obscurece todo o
campo clínico, não encontramos alguma coisa de intrínseco ao movimento de nosso
mundo contemporâneo, que iria no sentido de um “núcleo autístico”, aquele de
uma radical solidão de todo sujeito, próximo das elaborações de Jacques-Alain
Miller sobre o Um sozinho?
Eric Laurent: Você situa muito
bem as questões desse duplo movimento. A característica epidêmica da denominação
do autismo na nova clínica psiquiátrica da criança não é somente um fenômeno
ligado a uma imprecisão dos critérios diagnósticos como pensa Allan Frances, o
responsável do DSM IV atualmente crítico ferrenho do DSM IV.
É
o resultado de um conjunto de fatores que examino no livro. É também, em última
instância, a percepção, na clínica, do lugar da pura repetição que engaja o
corpo. Nessa perspectiva, a solidão não é aquela do sujeito mas aquela do Um do
gozo.
Pergunta: O sujeito
autista e a instituição: Antônio di Ciaccia pretendia distinguir a prática com vários do trabalho em equipe, para reservar a
primeira às intervenções junto aos sujeitos autistas. Poderíamos postular que
essa distinção convida a pensar que o autismo é uma defesa contra a loucura.
Trata-se então de se introduzir no universo do autismo respeitando essa defesa,
permitindo que aí se instale um outro que a criança possa tolerar, um outro
compatível com suas defesas. O senhor pensa, então, que essas elaborações nos
incitam à consideração de que haveria uma prática com os sujeitos autistas
distinta da prática com a criança psicótica propriamente dita?
Eric Laurent: Parece mais que
o sujeito autista sai de um autismo de baixo nível de funcionamento para um
funcionamento de alto nível, como se exprimem aqueles que falam nesses termos.
Digamos
que, para nós, permanecemos na mesma topologia de um espaço que não é
estruturado como aquele no qual se coloca o sujeito psicótico. Saímos do
autismo para retornar ao autismo, mas de outra forma.
Pergunta: Tratar-se-ia,
então, de considerar que o manejo do – tratamento – com, ou as intervenções junto
ao autista – não são para fazê-lo cair na loucura: trata-se de fazer a criança
sair de seu autismo ou de emparelhar-se com esta defesa de modo a permitir
ações mais humanizantes?
Eric Laurent: A metáfora
segundo a qual a intervenção junto ao sujeito autista teria por horizonte
“levar à loucura”, será cada vez menos admissível. É preciso renunciar a isso.
Trata-se de se apoiar sobre o uso autístico do objeto para ampliar o mundo do
sujeito e lhe permitir encontrar seu lugar em um Outro sempre disponível ao
deslizamento da língua e à contingência.
Pergunta: Aprendemos
muito bem, graças às descrições feitas pelo senhor e às reivindicações de
certos grupos de pais de autistas, a importância da comunidade para esses
sujeitos agrupados em associação, assim como para os autistas de alto nível que
reivindicam também pertencer a esta mesma denominação.
Poderíamos
ver aí um retorno ao que Lacan descreveu em seus Complexos familiares, sob a forma desses grupos familiares que
tomaram como suporte os elementos da comunidade, quando a psicanálise, ao
contrário, nasce no contexto da subida ao zênite do individualismo
contemporâneo.
Estaria
o senhor de acordo em distinguir a prática
com vários do suporte do sujeito autista por uma comunidade?
O
senhor não veria aí uma das razões dos recentes ataques contra a psicanálise
que se inscreve contrária em relação a esse retorno dos comunitarismos?
Eric Laurent: Temos
necessidade de dialogar com as associações de pais ou de simpatizantes de
sujeitos autistas que possam escutar a voz daqueles que estão privados de obter
direitos específicos. Essas associações, quando elas são heterogêneas, não
agrupam somente pais de autistas, não apenas simpatizantes de autistas, não
somente partidários de uma única abordagem, não apenas uma mesma faixa de
idade, etc. serão mais sensíveis às proposições que fazemos de uma abordagem
pluralizada, implementada nas instituições caracterizadas por esse modo
múltiplo que é a prática com vários.
Elas se afastam do modelo da comunidade de crença.
Pergunta: Seu livro é
construído em duas partes: a primeira é teórica e oferece ao leitor os avanços
mais detalhados sobre o autismo, inspirados nos trabalhos do último Lacan
transmitidos por Jacques.-Alain Miller, mas igualmente, de suas últimas
elaborações. A segunda parte é mais política, o senhor posiciona-se aí como um
cidadão esclarecido da cidade e demonstra as saídas dessa “batalha do autismo”,
coloca em jogo seus laços com o Big
Pharma e suas verdadeiras procuras da genética, que pretendem ao contrário
cada dia fazer avanços maiores.
Pode-se
considerar que o senhor dá, por tal composição, a via da posição que o clínico
orientado por Freud e Lacan deve ter na cidade: informado, combativo e o mais
próximo das questões políticas e clínicas? Isso pode permitir, para os jovens
clínicos, por exemplo, não se deixarem levar por um certo fatalismo que pretende
que a psicanálise, atacada por todas as partes, está acabando de morrer?
Eric
Laurent: Como
estaria acabando de morrer! Deixemos a pulsão de morte lá onde ela está, quer
dizer, na civilização. A desordem no real testemunha isso suficientemente e nós
o exploraremos na ocasião do próximo Congresso da AMP em 2014. A psicanálise
não cessa de propor sua réplica a essa pulsão de morte. O cientificismo
contemporâneo é um dos nomes dessa pulsão. Ele pensa que resolve os sintomas do
vivente por um saber estatístico fetichizado, visando reduzir a particularidade
a uma variação cifrada.
É
preciso, aliás, distinguir a precisão preditiva da série estatística do
reconhecimento dos limites desse saber. Um estatístico genial como Nat Silver,
“king of quants” (rei da quantificação) como é chamado, mantém em seu blog
hospedado no New York Times <http://fivethirtyeight.blogs.nytimes.com>
uma crônica muito contemporânea dessa tensão e dessa delimitação necessária.
Para a genética, é preciso seguir a querela das interpretações, que faz tanta
raiva na ciência biológica quanto a querela das interpretações da mecânica
quântica em física.
Os
exageros de Big Pharma sobre os
resultados efetivos dos medicamentos, sua minimização dos efeitos nefastos, as
dificuldades de interpretação dos resultados dos ensaios clínicos controlados
(ECR), passaram, agora, de empresas fechadas à praça pública. Os escândalos não
tocam somente aos psicotrópicos mas a todas as classes de medicamentos (cf:
Vioxx, Mediator, as estatinas (statines) etc.). O jovem clínico está agora
imerso em tudo isso. Ele está em um mundo em que ele mesmo toma medicamentos,
como todo mundo, em que a heroína do seriado Pátria-(Homeland) toma regularmente seus psicotrópicos, onde o cenário do
filme O lado bom da vida (The silver lining playbooks), com Bradley Cooper,
Jeniffer Lawrence, Robert De Niro, faz de Bradley Cooper um simpático bipolar,
confuso como todo mundo em seus amores. O diretor e roteirista David Russel
revelou que ele fez o filme para seu filho de 12 anos, diagnosticado de
bipolar. É preciso ver o filme que é um sucesso: foi prejudicado pela tradução
francesa do título como Happiness
Therapy.
É
um modo contemporâneo no qual a loucura
encontrou seu estatuto ordinário, que não é somente aquele de uma doença, mas
de um modo de ser. Esses que não tomam medicamentos, substâncias psicotrópicas
legais têm recursos às substâncias ilegais, leves ou pesadas.
Esse
modo é o nosso, aquele em que a ciência não nos chega apenas sob os gadgets e
latusas, como se exprimia Lacan, mas sob a forma dos psicotrópicos e do cálculo
de nossa vida pelo computador, o tablet super portável e o smartphone. Para se
orientar nesse mundo e reconhecer o lugar do sujeito não é suficiente a
localização pelo GPS, é preciso as referências da psicanálise muito viva, essa
de hoje.
Entrevista
realizada por Dominique Holvoet e Virginie Leblanc, originalmente publicada na
revista Coutil en ligneS, n. 10.
Tradução:
Cristiana Pittella de Mattos
Revisão:
Maria Rita Guimarães
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