Durante
a festa dos 30 anos do Courtil, em Tournai, Ana Martha Maia perguntou a
Patrizia Torrecuso se ela gostaria de participar do Blog da EBP sobre o
autismo, com um texto a respeito da experiência de sair de São Paulo para estagiar no Courtil e estar lá até hoje! Um tempo depois, ela
respondeu com este bonito testemunho:
“Meu
caso clínico" no
Courtil, ou meu caso com o Courtil.
Patrizia Torrecuso
Quando fui solicitada para escrever para o blog sobre minha
experiência no Courtil, minha primeira reação foi de entusiasmo: depois desses treze anos de prática esta é a primeira vez que
tento transmitir o que foi para mim essa experiência. Não atribuo ao outro de maneira alguma esse fato, mas à minha necessidade, ao meu "tempo de ver",
processo intimamente ligado à minha experiência analítica, enquanto
paciente, "analisante" para ser mais precisa.
Em um segundo momento, eu me senti acuada: nesse texto não deveria falar de um caso de minha prática, mas de minha experiência. Isso para mim
veio dito dessa maneira, quero dizer, como eu interpretei: deveria falar de
"meu caso clínico" no Courtil, ou ainda meu
caso com o Courtil, por que acho que seria questão desses dois tipos
de casos.
Final de 2000, eu chegava em Tournai, de "mala e
cuia" para uma experiência inicial de três à seis meses de estágio no grupo de jovens adultos. No ano anterior havia
finalizado o curso de psicologia na PUC/SP, cinco anos de grande envolvimento,
desejo de saber e que tiveram como consequência um profundo
desejo, o de conhecer mais e mais o que a psicanálise de orientação lacaniana poderia me ensinar como prática clínica com o sujeito
autista e o psicótico. Depois de percorrer uma
bibliografia sobre psicanálise e autismo (Leo
Kanner, Margareth Mahler, Francis Tustin, Marie Christine Laznik-Penot, etc),
na tentativa de "explicar" a posição da psicanálise lacaniana face à essa
"estrutura" tão discutida enigmática, que mesmo atualmente é causa de tantas
controvérsias, fui tentar decifrar o seminário XI "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise". O resultado foi uma tentativa de monografia que
me rendeu uma nota boa, mas a sensação de nada saber e a
vontade ir "beber na fonte". Uma professora de psicanálise da PUC me falou do Courtil como possibilidade de estágio, formação e hospedagem! Enfim,
era muito bom para ser verdade. Comecei a colocar meu projeto em prática, professor de francês, carta ao diretor
e rapidamente tive uma resposta positiva. Meu passaporte italiano me daria uma
tranquilidade, caso quisesse prolongar esse período, mas pensava
que seriam só alguns meses. Sempre fui muito
ligada à minha família, às belezas naturais
do Brasil, mesmo se a violência urbana de São Paulo não fizesse parte de
meu projeto de fundar uma família e criar filhos,
a ideia de viver longe não era uma ideia
inicial. Pensava em me formar por um tempo e trazer para meu país, como instrumento de trabalho, o que teria conseguido
aprender e apreender.
O trabalho do estágio começou logo e rapidamente percebi que uma das coisas que o
Courtil não ensina é como cada um deve trabalhar. Parece contraditório, mas na prática não é nem um pouco,
porque não há uma fórmula, uma maneira única de
"interagir" com esses sujeitos. Nesse espaço novo que me cercava e que me era tão atraente, fascinante e assustador, de início. Esses jovens falavam e me solicitavam. E eu, do meu
lado, querendo me comunicar, mas o limite da língua fazendo
barreira real. Foi então, meio sem
escolha, que decidi tentar encontrar minha maneira de trabalhar com eles, mesmo
se esse limite real acarretava grandes dificuldades e angústias: estava lá para isso, era meu
desafio.
Ao mesmo tempo, via meus colegas psicanalistas que seguiam
uma formação em Paris, no Courtil, uma formação contínua e permanente. E
sempre com algo que me impressionava, uma humildade face ao saber, face à teoria lacaniana, o que me tranquilizava, sobretudo quando
expressavam a dificuldade de apreender os conceitos de Lacan. Logo quis
participar de tudo isso, minha ideia era fazer o máximo possível, nesse tempo.
Mas não sabia nesse momento o quanto estava
enganada, pensando que seria eu que determinaria esse tempo, que fosse algo
conhecido e ao meu alcance. Hoje sei que esse tempo não é assim, cronológico, e que só a análise nos permite vê-lo avançar e parar em outros momentos, funcionando de maneira outra
que não a convencional. Paris, então, acabou rapidamente vindo como uma evidência, e um ano depois, uma análise começaria, depois de um ano de errância nos
significantes de meu gozo. Mas era um começo, eu tentava
entrar no discurso analítico, curso de
Jacques-Alain Miller às quartas feiras,
Section Clinique, leituras, os seminários do Courtil,
apresentação no RI3 (casos da prática institucional), eu dava "tiros" para todos
os lados, na tentativa de me formar. E paralelamente a essa formação, o trabalho no Courtil, o encontro com a psicose, com o
real desses jovens, bem diferente do que havia experimentado na minha curta prática no Brasil, em estágio em hospital
psiquiátrico, como AT (acompanhante terapêutico).
A convivência com os jovens
era mais direta. Logo que fui contratada pela instituição, três meses depois de
chegar, comecei a viajar com eles, a fazer a noite (dormir na instituição), tudo isso me colocava face-a-face com real desses
jovens que, claro, não me deixava incólume face ao meu próprio real e as
minhas questões. Acho que isso é o que há de tão rico em uma experiência desta ordem, é um mergulho nas profundezas do inconsciente.
Creio que se fosse colocar em palavras o que esses anos de
Courtil me ensinaram sobre a prática institucional,
eu diria que deixar de lado ideias pré-concebidas, a
vontade de compreender e tirar conclusões rápidas demais sobre algum sujeito com quem me senti
confrontada às dificuldades impostas pelo real que
o invadia no momento... tudo isso não deve ser muito
novo para quem exerce a psicanálise de orientação lacaniana no domínio privado. A
minha prática até o momento se
restringe ao Courtil, não me sentia pronta
para começar a atender aqui, em consultório, precisei desse tempo.
Hoje penso que o savoir
faire que acabamos incorporando no Courtil, no tempo que passamos
trabalhando, é muito particular e singular. Está anexado ao grupo de pessoas que trabalham no Courtil, quer
sejam ou não psicanalistas, mas imersos em um
discurso psicanalítico, pela formação mesmo a que somos submetidos de maneira constante, nas
reuniões clínicas, seminários, supervisões, análise e que acabam investindo nessa prática.
Há um rigor, uma
organização, uma renovação a cada ano escolar, que dá início a outro ano de trabalho: sempre há algo de novo que permite a não instalação do "mesmo", como um laboratório institucional, onde tudo sempre é questionado, revisado e que faz diferença. A não cristalização do saber em apenas algumas pessoas, sendo algo que
circula, que não é fixo. Mesmo que
alguns lugares sejam meio fixos, como os dos responsáveis terapêuticos, não significa que se identificam a esse semblante de saber, a
esse discurso de mestre. Para mim, que cheguei com uma transferência enorme, uma idealização do Courtil, da
psicanálise lacaniana, foi um verdadeiro
encontro me deparar com essa humildade em relação ao saber, com o
respeito e a sensibilidade com que as estruturas são abordadas, como o sujeito é pensado.
O respeito face ao sujeito, suas diferenças, suas invenções e singularidade,
em uma postura de proximidade e de escuta atenta. Proximidade humana, em que o
objetivo não seja classificar o sujeito, em que
a estrutura e o diagnóstico, mesmo se
pensados, não venham servir de limites no que
poderá ser construído ou determinado na história desse sujeito.
E o que é muito incrível é ser surpreendido
pelo que acaba sendo construído nessas trajetórias de vida, nesses anos que esses jovens atravessam
vivendo no Courtil. Muitas vezes, eles se dirigem ao Courtil em um estágio subjetivo superprecário, invadidos,
alucinados. No entanto, em um tempo muito próprio a cada um,
podem viver sozinhos, ir e vir nos solicitar, sem a necessidade de uma presença contínua, de uma colagem
ao outro. Cada sujeito como único.