segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

CARTA ABERTA A EMMA LEACH, PRESIDENTA DA ASSCIAÇÃO APRENEM


Cara Emma Leach,
A campanha “Práticas obsoletas na atenção pública do autismo na Catalunha”, que você lidera como Presidente da entidade que representa, forçou o conjunto de pais e mães de pessoas com autismo a entrar numa discussão profissional que, como pais e mães, não queríamos nem nos corresponde.
Dirijo-me a você como Presidente da Associação TEAdir de pais, mães e familiares de pessoas com TEA, ainda que, certamente, outros pais e mães se sentirão identificados com o que esta carta coloca.
Permita-me que me dirija a você como máxima responsável do texto que, através da plataforma Change.com, promoveu sua entidade. Lendo-o com atenção, só duas causas se apresentam como possíveis do ataque à paz e respeito entre pais, entidade e administrações, que esta campanha supõe:  
  1. Que os profissionais que assessoram sua entidade tenham cometido um equívoco, mais ou menos intencional, de causas. Ou seja, que tenham confundido a causa legítima dos pais, de melhorar a vida de seus filhos com autismo, com a causa de alguns profissionais concretos, de conquistar lugares de influência e poder. Se for assim, você estará de acordo comigo que nos encontraríamos diante de um uso do sofrimento dos pais contra o código ético profissional.
  2. Que os pais e mães que você reuniu em torno ao apoio a esta campanha confundiram o adversário que impediria a melhora da atenção aos seus filhos, atribuindo aos maus encontros dos que você chama psicanalistas, a razão de que seus filhos não melhorem como poderiam.    

Certamente, ambas as razoes são compatíveis, mas não me corresponde aqui tratar a primeira, já que o mais preocupante de sua campanha é que esteja liderada por pais e mães que, como a todos nós, nos une o mesmo desejo: o bem estar de nossos filhos. 
Sua campanha, ainda que tome a forma de uma demanda de melhora da atenção dos meninos e meninas com TEA, está atravessada por uma vontade de exclusão do que já existe. A racionalização da qual você fala não é mais que a vontade de eliminar o que há, isto é, uma rede de atenção ambulatória pública construída ao longo do tempo a partir do trabalho conjunto entre entidades e administração.
Você deve saber, de entrada, que modificar os serviços que já existem ou implementar outros novos não pode infringir a Convenção sobre os direitos das pessoas com incapacidade que, em seu artigo 4.1.f) diz textualmente: Empreender ou promover a investigação e o desenvolvimento de bens, serviços, equipe e instalações de desenho universal, com ajuste à definição do artigo 2 da presente Convenção, que exijam a menor adaptação possível e o menor custo para satisfazer as necessidades especificas das pessoas com incapacidade, promover sua disponibilidade e uso, e promover o desenho universal na elaboração de normas e diretrizes. Não está então claro que sua petição respeite esta obrigação geral incluída na Convenção.
Mas, além disso, excluir o que já existe costuma ir acompanhado – lê-se em sua petição da imposição de uma verdade universal: um único modelo, neste caso, para todos os autistas. Mais alem do método, esta exigência daquilo no que você crê se escuta como uma tentativa de autoafirmação e autossuficiência frente ao que impediria levá-lo adiante. Mas não é senão desde um rechaço latente, cara Emma Leach, que isto pode ser feito deste modo, e é este rechaço ao outro o que termina finalmente retornando sobre si mesmo. Permita-me então que lhe diga que sua campanha se equivocou em seus dois objetivos: o adversário e as formas de combatê-lo.
O adversário
A exigência que fazem os representantes políticos coloca os psicanalistas no epicentro dos males da atenção pública do autismo. Quero recordar, entretanto, que a rede pública de Centros de desenvolvimento e atenção precoce (CDIAP) e Centros de saúde mental infanto-juvenil (CSMIJ) do Governo da Catalunha integra em suas equipes multidisciplinares psicólogos, contratados com a finalidade de exercer as funções próprias da psicologia, e que cumprem com os requisitos legais pertinentes, portanto com a titulação universitária correspondente, seja qual for sua orientação. Não há, portanto, psicanalistas enquanto tal nos centros ambulatórios mencionados.
Outra coisa é a orientação teórica que estes profissionais escolham em sua prática. Certamente estão os que escolheram a psicanálise, da mesma forma que se encontram os que preferiram o modelo cognitivo-comportamental, mas também é certo que se podem encontrar profissionais que não se identificam nem com um modelo nem com o outro, e que seguem percursos de formação diferentes, inclusive ecléticos. Neste sentido, referir-se à psicanálise como modelo preferente, mais dotado economicamente do sistema público de saúde é um erro que provêm ou do desconhecimento da realidade dos centros públicos ou bem de um reducionismo simplista de tudo aquilo que não é comportamental.  
E podemos agregar neste ponto, para seu conhecimento, que uma formação recente nos CSMIJs no diagnóstico do TEA, que desde o Departamento de Saúde foi encarregada à Sra. Amaya Hervás e recomendada a todas as equipes destes serviços, foi financiada com dinheiro público sem opção a que esses mesmos profissionais possam também receber uma formação subvencionada no diagnostico clínico do autismo que não recorra necessariamente aos testes diagnósticos que circulam hoje. 
Surpreende, por outro lado, sua insistência na evidência científica e nas boas práticas. E nisto, a psicanálise parece ser de novo, para você, o mais claro inimigo do qual a rede pública não as pode assegurar – a evidência científica e as boas práticas. Devo supor que leu com atenção os cinco textos de referência que vocês adjuntam à campanha e que, portanto, pode dar conta da quantidade de cifras praticamente incompreensíveis que ali figura e dos resultados restringidos e pouco conclusivos – recomendações, melhor falando – que se desprendem. Não é tampouco este o lugar em que entrar no detalhe desses textos, mas está claro que se trata de estudos que não gozam de um consenso de nível internacional.
Em todo caso, a validade desses estudos no dia a dia de muitos pais tende a zero. Ou você considera que os pais teriam que se perguntar pela evidência científica de todas e cada uma das relações de nossos filhos e de nós mesmos quando nos encontramos com as dificuldades cotidianas em casa, na rua, no parque, na biblioteca? Esta suposta evidência científica dos transtornos de nossos filhos, crê que serve também para explicar as reações de nossos filhos em contextos nos quais não se aplicam esses métodos de retificação de conduta (nas sessões de música, nas brinquedotecas, na piscina, nas atividades esportivas, nas festas de colegas de classe, nas refeições familiares), ou inclusive quando suas respostas não coincidem com o que se espera do método? 
De que maneira o método ABA (Análise aplicada da conduta) contempla a posição decidida de uma criança de participar dele? Está previsto que os pais que o aplicam possam escutar esta negativa de seus filhos, quando esta se dá? Que alternativa de tratamento lhes é oferecida neste caso?
Sua campanha sustenta uma certeza: a existência de um único método confiável para o autismo. Sendo isto certamente duvidoso, a partir dos estudos que vocês promovem, é ainda mais quando se sabe que o ABA não contempla a posição decidida de uma criança a não participar dele. Suponho que saberá que quando isso acontece, que quando uma criança resiste com virulência aos exercícios do adulto, o método desenhado por Lovaas, e ensinado oficialmente nos Estados Unidos pela UCLA, não contempla outra intervenção que o exercício de uma violência igual ou superior à da criança até conseguir sua obediência. É este o modelo que pedem para a rede pública?
Entende-se assim que a perspectiva psicanalítica se transforme num adversário claro deste método, pois os profissionais com esta orientação que atenderam a nossos filhos na rede pública nunca interviram sem obter antes o consentimento da criança. Em ocasiões falta tempo, mais paciência e mais confiança para chegar a isso, mas lhe asseguro que nós o preferimos.
O risco de dar forma a um adversário é que este acabe adquirindo uma consistência que não se esperava ao início. E situar a psicanálise no coração de sua campanha nos obriga a defender, os pais e mães do TEAdir, esta orientação teórica e prática que serviu para nossos filhos. É por esta razão que anunciaremos nos próximos dias a criação da Federação TEAdir Espanha, que servirá de interlocução com os representantes políticos a nível estatal e tratará os contágios de campanhas como a sua.
As formas de combater
Pode-se chegar a entender que, se escolheram os psicanalistas como razão de sua mobilização foi basicamente pelos maus encontros que alguns pais tiveram com determinados profissionais nestes centros. É razão suficiente para associar-se e iniciar uma petição a favor de um método, mas contra aqueles pais e mães que se mostram satisfeitos com a proposta terapêutica recebida, mais além de que sejam métodos comportamentais ou uma orientação psicanalítica? 
Se observar os pais que lhe rodeiam, se dará conta de que muito frequentemente escolhemos para nossos filhos os tratamentos para suas dificuldades que mais se adequam a nossos modelos ou estilos educativos. Por que, então, você não optou por centrar seus esforços, e os dos pais que mobiliza, em simplesmente pedir à administração por mais comportamentalismo para seus filhos? Poderia encontrar como resposta que a administração se proponha a assegurar a orientação comportamental dentro de uma pluralidade em todas as equipes profissionais. Seria, assim mesmo, a ocasião para pedirmos que em todas as equipes esteja também garantida a orientação psicanalítica.  
Tendo em conta sua insistência na má práxis de todos os psicanalistas, me vejo com a obrigação de lhe perguntar: quais são exatamente estes erros na prática dos profissionais com os que se encontrou que a levaram a falar de má práxis, um termo que se situa, de fato, nos limites da difamação? Trata-se unicamente de inação com as crianças menores ou de não força-los, de captar sua atenção e implicação por meio da brincadeira, de não aplicar métodos para aumentar sua comunicação antes que a própria criança encontre sua maneira de se comunicar, ou de não impor um diagnostico sobre as particularidades das crianças? Sua má práxis é a de conseguir a cumplicidade e responsabilidade dos pais, seguindo seus próprios ritmos, para acompanhar seus filhos? É necessário, cara Emma Leach, que mostrem estes supostos exemplos de má práxis para que seja possível sustentar um questionamento, como o que fazem desde Aprenem, dos profissionais aos que você denomina psicanalistas.
Creio que fazem bem, finalmente, em expor unicamente como hipótese, sem necessidade de afirmá-lo com maior contundência, que as praticas psicodinâmicas podem incorrer em má práxis. Trata-se de um terreno delicado no qual, me parece, convém não entrar. Por acaso, desde TEAdir seguimos de perto as resoluções judiciais que começam a aparecer e que questionam seriamente a ética dos modelos de retificação de conduta. 
Para um debate público e plural sobre o autismo
A situação atual na atenção do autismo poderia ser, sem dúvida, melhorada, mas consegui-lo não passa pelo ataque, senão por um debate sério e rigoroso, fruto do trabalho conjunto e do respeito à diversidade.
Convido você a participar num debate público e plural sobre o autismo, onde possa defender os argumentos que utiliza para ir contra os profissionais orientados pela psicanálise, os profissionais diversos da rede pública e, sobretudo, os pais e mães que não compartilham dos seus postulados. Também para conhecer os benefícios de sua proposta, claro. Nós, de nossa parte, argumentaremos nossos posicionamentos.
Enquanto isso, os pais e mães do TEAdir lhe pedimos publicamente:
  1. Que não utilizem o conjunto de pais e mães de pessoas com autismo para um debate das ideias que devem livrar os profissionais.
  2. Que busquem um adversário claro que estaria impedindo seus propósitos e deixem que o conjunto de nossos profissionais exerça com liberdade sua profissão.
  3. Que peçam aos especialistas que lhe assessoram que defendam suas evidências a título pessoal e em espaço público de debate.
  4. Que se dirijam a nossos representantes políticos para melhorar a atenção das pessoas com autismo e de suas famílias, e não só de alguns em detrimento de outros.
  5. Que peçam a estes mesmos representantes políticos que se ocupem também do futuro dos nossos filhos, diagnosticados hoje de TEA, e que serão amanhã pessoas adultas para as quais não existem ainda suficientes serviços.
  6. Que retirem essa campanha e trabalhem, se o que querem é se constituir como entidade de referência, em encontrar aquilo que beneficie ao conjunto de pais e mães. Aqui encontrarão, também, a nós, pois não estamos obrigados a nos entendermos, mas a não nos impedirmos de trabalhar para melhorar a vida das pessoas com autismo.       

Barcelona, 4 de fevereiro de 2016
Iván Ruiz,
Presidente da Associação TEAdir de pais, mães e familiares de pessoas com autismo



Tradução: Anna Carolina Nogueira

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Seminário Autismo e Psicose Infantil - da clínica à política, e retorno.


É evidente que o parceiro fundamental do sujeito jamais é o Outro. Não é o Outro como pessoa nem como lugar da verdade. Ao contrário, o parceiro do sujeito, o que a psicanálise sempre percebeu, é algo dele próprio: sua imagem - a teoria do narcisismo retomada por Lacan em "O Estádio do espelho" - seu objeto a, seu mais-de-gozar e, fundamentalmente, seu sintoma. Eis esboçada a Teoria do Parceiro.
 Jacques-Alain Miller, A Teoria do Parceiro.


No tempo das etiquetas, em que tudo se transforma em "hiperatividade" ou "autismo", a perspectiva psicanalítica do real do sintoma restitui ao ser falante a possibilidade de encontrar uma solução singular para seus impasses com o trauma da linguagem. 

O encontro de Freud com o menino Hans é o ponto de partida do argumento de Daniel Roy, na bibliografia sugerida para a Première Journée de la Fédération des Instituitions de Psychanalyse Appliquée (FIPA), que será realizada em Bordeaux, em 12 de março, com o tema "Problemas atuais da psicanálise aplicada".

Para além da determinação do sintoma da criança pelos impasses do desejo parental, Roy aponta a solução elaborada por Hans e a existência de uma língua em comum que circula entre a criança e os pais, tal como sublinha Freud, a partir das notas do pai de Hans, e Lacan, quando enfatiza a dimensão de lalange, em seu último ensino. "Nós não sabemos nada preliminarmente do peso do gozo contido para cada um nestes significantes" - diz Roy - "nem a proporção de desejo que é ali investido", prossegue ele. Que o ser falante, um a um, encontre seu modo de tratamento do real, para torná-lo suportável - é a aposta da psicanálise de orientação lacaniana.

Eixo temático desta bibliografia, "Os pais, parceiros da experiência" é também um dos temas que surgem em nosso Seminário. Apresentado por Wagner em dezembro, o caso Gabriel nos ensinou que o trabalho com este jovem somente prossegue porque ele pode contar com vários parceiros: o autista,  a família, as equipes do CAPS e da Clínica da Família, e as pessoas do território por onde transita.

Mas o que é um parceiro? Em nosso primeiro encontro de 2016,  prosseguiremos na leitura comentada do caso Robert, de Rosine e Robert Lefort, visando a distinção do autismo. 
E na segunda parte do Seminário, orientados pela Teoria do Parceiro, de Miller (Quarto, 77. 2002) nós nos deteremos nesta questão do trabalho com os pais, como parceiros, a partir de textos indicados por Roy: (1) Préliminaire, 13. 2001 - em que escolhemos: Rouillon, J-P. "Le travaile avec les parents: de la fonction de résidu à la surprise"; (2) Baio, V. "La demande des parents". La Petite Girafe, 20. Décembre, 2004; e (3) Grasser, Y. "L'événementiel lacanien". La Petite Girafe, 28. Octobre, 2008.

Neste encontro de fevereiro, articularemos estes textos com casos clínicos e comentários de: (a) Bonnaud, H. "L'inconscient de l'enfant". Paris: Navarin/Le Champ Freudien. 2013; e (b) Deltombe, H. "Lorsque l'enfant questionne". Paris: Éditions Michèle. 2013; que também constam na lista de Roy. Lacadée e Leclerc-Razvet serão abordados em março.

Com estes ricos textos, iniciaremos nosso terceiro ano de trabalho!

Coordenação: Ana Martha Maia (EBP/AMP).
Colaboradora: Bruna Brito.
Comissão de Tradução : Ana Martha Maia, Anna Carolina Nogueira, Astrea Gama e Silva, Bruna Brito, Luiza Sarrat Rangel, Maria Elizabeth Araújo e Marina Valle.
Data: 27 fevereiro, 12 março, 9 abril, 7 maio, 4 junho e 2 junho. Sábados, 10h.
Local: Sede da EBP-Rio. Rua Capistrano de Abreu, 14. Humaitá. 
Informaçõesanamarthamaia@gmail.com

*Aos inscritos que ainda não receberam, solicitar as traduções por email.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A epidemia silenciosa


Miquel Bassols
A angústia – que não é o mesmo que o medo, nem a depressão, nem sequer o ataque de pânico com o qual frequentemente a relacionam - se propaga como pandemia neste século XXI. Mais extensa do que poderia se pensar, talvez, precisamente, porque se vive em silêncio. Um transtorno – ou talvez um sinal de alarme - de terapia incerta, que tem relação com o desejo, e com nossa percepção do Outro.
Palpitações, suor frio, calafrios, temores, tontura, sufocação, nó no estômago, sensação de loucura, de morte iminente... São os signos mais visíveis do quadro clínico denominado transtorno de ansiedade, em cuja classificação encontramos desde o panic attack, passando pelo stress, até as fobias mais diversas. Converteu-se hoje num dos diagnósticos mais comuns, associado muitas vezes ao de depressão, até o ponto de merecer o título de epidemia silenciosa do século XXI.
Tal como nos recordam os gestores da saúde, é hoje uma das causas mais frequentes de licença no trabalho. Frente a seu avanço, tão sutil como irrefreável, foi se desdobrando um amplo arsenal terapêutico: psicoterapias de diversas orientações, com técnicas de sugestão, exercícios de relaxamento e de respiração, de confrontação e exposição repetida ao objeto temido... Tudo isso acompanhado da oportuna medicação com ansiolíticos, cujo consumo aumentou nas últimas décadas de modo exponencial. Resultado: embora consigam, por um lado, alguns efeitos terapêuticos, com muita frequência passageiros, por outro, a epidemia segue avançando de maneira impassível, deslizando de um signo a outro, como um alien que sempre sabe se esconder em algum lado da nave vital do sujeito para reaparecer, pouco depois, ali onde menos se espera.
“Já não tenho tanto medo de voar de avião – me dizia uma jovem que havia utilizado um de ditos métodos –, mas agora sinto um vazio tremendo cada vez que devo me separar de minha mãe”. “É uma espada invisível que me atravessa o peito”, me dizia um homem, e era, de fato, uma espada de sem-sentido que perfurava cada momento de sua vida cotidiana.
Constatamos, então, este fato: quanto mais efeitos terapêuticos tenta-se produzir diretamente sobre os signos manifestos da epidemia, mais esta retorna com signos novos. E retorna para revelar uma experiência que transcorre em silêncio, uma experiência singular e intransferível que desde muito tempo já se chamava com este termo: a angústia.
A experiência subjetiva da angústia é, de fato, distinta e irredutível a nenhum dos signos que tentam descrevê-la e que só nos indicam algumas de suas manifestações. A experiência subjetiva da angústia permanece no silêncio mais íntimo do sujeito como algo indescritível, sem conceito, não se deixa capturar por ginástica mental alguma, por nenhuma sugestão mais ou menos coercitiva diante do objeto que a causa.
Mais além dos signos nos que se expande a epidemia silenciosa, o silêncio da angústia é, ele mesmo, um signo fundamental que recebe o sujeito desde o mais íntimo com estas perguntas: O que quer? O que é finalmente, tanto para aqueles a quem ama como para você mesmo, uma vez confrontado com esse silêncio que te agita, ensurdecedor? O signo de angústia toma, então, um valor de agente provocador, de esfinge que coloca para cada sujeito a pergunta mais certeira sobre seu ser e seu desejo. Tantos ideais largamente sustentados e essa pergunta havia ficado enterrada sob seu excessivo ruído.
A angústia se manifesta, então, como o signo de um excesso, de um demasiado cheio em que vive o sujeito de nosso tempo, inundando pela série de objetos propostos a seu desejo. É o signo de que faz falta um pouco de vazio, de que faz falta a falta, como dizia há algum tempo o psicanalista Jacques Lacan, em seu seminário dedicado por inteiro a esse estranho afeto, A angústia.
É interessante sublinhar que a ciência de nosso tempo detectou este excesso por sua outra cara, mais como um defeito, como uma insuficiência. O detectou no denominado atraso genômico do ser humano, como a razão última dos crescentes signos de sua ansiedade. Em que consistiria esse atraso? A civilização humana haveria transformado o mundo com tal rapidez que nosso suporte genético não haveria disposto de tempo suficiente para se adaptar a ele. O relógio de nosso organismo teria assim um atraso genético, ancorado como estaria em suas respostas a uma realidade que já não existe. Diremos por nossa parte que só é possível entender este atraso se o consideramos a respeito do tempo subjetivo que podemos definir como o tempo do simbólico, o tempo de uma civilização que exige uma satisfação imediata das pulsões, o tempo de um mundo que exige cada vez mais rapidez, mais satisfação imediata, sempre um pouco mais... “Meu Deus, dá-me um pouco de paciência, mas que seja agora mesmo!”, dizia uma historia que segue a mesma lógica que o sujeito que chega hoje angustiado a nossas consultas. Este traço de urgência temporal, de agora mesmo, tem sua tradução num traço espacial, num demasiado cheio. A realidade da angústia é, assim, uma realidade a qual parece faltar o vazio necessário para que este excesso não termine com sua própria existência, com seu conjunto de objetos virtuais onde tudo deve estar ao alcance da mão, sim, agora mesmo.
Deveríamos entender, então, o efeito chamado atraso genômico como um efeito invertido deste excesso, produto ele mesmo de nossa civilização, de sua maquinaria simbólica. É a este excesso de ruído ao que responde o silêncio ensurdecedor da angústia de um modo singular em cada sujeito. E, diante dele, parece tão inútil fugir, como tentar se adaptar com formas mais ou menos coercitivas, mais ou menos sugestivas, que o movem sempre a outro lugar.
A angústia, inevitável, é preciso saber atravessá-la tomando-a como signo da pergunta radical do desejo de cada sujeito sobre o sentido mais ignorado de sua vida. Mas para responder a esta pergunta, primeiro há que saber dar a palavra ao silêncio da angústia, há que fazê-la falar em cada sujeito, um por um. Coisa nada fácil num momento em que sobram instruções e protocolos para silenciá-la de novo. Somente desde aí, entretanto, a angústia nos libertará o sábio segredo de que é resposta, ainda que sempre seja com seu tempo de urgência precipitada.


Tradução: Anna Carolina Nogueira

Revisão: Ana Martha Maia