quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A epidemia silenciosa


Miquel Bassols
A angústia – que não é o mesmo que o medo, nem a depressão, nem sequer o ataque de pânico com o qual frequentemente a relacionam - se propaga como pandemia neste século XXI. Mais extensa do que poderia se pensar, talvez, precisamente, porque se vive em silêncio. Um transtorno – ou talvez um sinal de alarme - de terapia incerta, que tem relação com o desejo, e com nossa percepção do Outro.
Palpitações, suor frio, calafrios, temores, tontura, sufocação, nó no estômago, sensação de loucura, de morte iminente... São os signos mais visíveis do quadro clínico denominado transtorno de ansiedade, em cuja classificação encontramos desde o panic attack, passando pelo stress, até as fobias mais diversas. Converteu-se hoje num dos diagnósticos mais comuns, associado muitas vezes ao de depressão, até o ponto de merecer o título de epidemia silenciosa do século XXI.
Tal como nos recordam os gestores da saúde, é hoje uma das causas mais frequentes de licença no trabalho. Frente a seu avanço, tão sutil como irrefreável, foi se desdobrando um amplo arsenal terapêutico: psicoterapias de diversas orientações, com técnicas de sugestão, exercícios de relaxamento e de respiração, de confrontação e exposição repetida ao objeto temido... Tudo isso acompanhado da oportuna medicação com ansiolíticos, cujo consumo aumentou nas últimas décadas de modo exponencial. Resultado: embora consigam, por um lado, alguns efeitos terapêuticos, com muita frequência passageiros, por outro, a epidemia segue avançando de maneira impassível, deslizando de um signo a outro, como um alien que sempre sabe se esconder em algum lado da nave vital do sujeito para reaparecer, pouco depois, ali onde menos se espera.
“Já não tenho tanto medo de voar de avião – me dizia uma jovem que havia utilizado um de ditos métodos –, mas agora sinto um vazio tremendo cada vez que devo me separar de minha mãe”. “É uma espada invisível que me atravessa o peito”, me dizia um homem, e era, de fato, uma espada de sem-sentido que perfurava cada momento de sua vida cotidiana.
Constatamos, então, este fato: quanto mais efeitos terapêuticos tenta-se produzir diretamente sobre os signos manifestos da epidemia, mais esta retorna com signos novos. E retorna para revelar uma experiência que transcorre em silêncio, uma experiência singular e intransferível que desde muito tempo já se chamava com este termo: a angústia.
A experiência subjetiva da angústia é, de fato, distinta e irredutível a nenhum dos signos que tentam descrevê-la e que só nos indicam algumas de suas manifestações. A experiência subjetiva da angústia permanece no silêncio mais íntimo do sujeito como algo indescritível, sem conceito, não se deixa capturar por ginástica mental alguma, por nenhuma sugestão mais ou menos coercitiva diante do objeto que a causa.
Mais além dos signos nos que se expande a epidemia silenciosa, o silêncio da angústia é, ele mesmo, um signo fundamental que recebe o sujeito desde o mais íntimo com estas perguntas: O que quer? O que é finalmente, tanto para aqueles a quem ama como para você mesmo, uma vez confrontado com esse silêncio que te agita, ensurdecedor? O signo de angústia toma, então, um valor de agente provocador, de esfinge que coloca para cada sujeito a pergunta mais certeira sobre seu ser e seu desejo. Tantos ideais largamente sustentados e essa pergunta havia ficado enterrada sob seu excessivo ruído.
A angústia se manifesta, então, como o signo de um excesso, de um demasiado cheio em que vive o sujeito de nosso tempo, inundando pela série de objetos propostos a seu desejo. É o signo de que faz falta um pouco de vazio, de que faz falta a falta, como dizia há algum tempo o psicanalista Jacques Lacan, em seu seminário dedicado por inteiro a esse estranho afeto, A angústia.
É interessante sublinhar que a ciência de nosso tempo detectou este excesso por sua outra cara, mais como um defeito, como uma insuficiência. O detectou no denominado atraso genômico do ser humano, como a razão última dos crescentes signos de sua ansiedade. Em que consistiria esse atraso? A civilização humana haveria transformado o mundo com tal rapidez que nosso suporte genético não haveria disposto de tempo suficiente para se adaptar a ele. O relógio de nosso organismo teria assim um atraso genético, ancorado como estaria em suas respostas a uma realidade que já não existe. Diremos por nossa parte que só é possível entender este atraso se o consideramos a respeito do tempo subjetivo que podemos definir como o tempo do simbólico, o tempo de uma civilização que exige uma satisfação imediata das pulsões, o tempo de um mundo que exige cada vez mais rapidez, mais satisfação imediata, sempre um pouco mais... “Meu Deus, dá-me um pouco de paciência, mas que seja agora mesmo!”, dizia uma historia que segue a mesma lógica que o sujeito que chega hoje angustiado a nossas consultas. Este traço de urgência temporal, de agora mesmo, tem sua tradução num traço espacial, num demasiado cheio. A realidade da angústia é, assim, uma realidade a qual parece faltar o vazio necessário para que este excesso não termine com sua própria existência, com seu conjunto de objetos virtuais onde tudo deve estar ao alcance da mão, sim, agora mesmo.
Deveríamos entender, então, o efeito chamado atraso genômico como um efeito invertido deste excesso, produto ele mesmo de nossa civilização, de sua maquinaria simbólica. É a este excesso de ruído ao que responde o silêncio ensurdecedor da angústia de um modo singular em cada sujeito. E, diante dele, parece tão inútil fugir, como tentar se adaptar com formas mais ou menos coercitivas, mais ou menos sugestivas, que o movem sempre a outro lugar.
A angústia, inevitável, é preciso saber atravessá-la tomando-a como signo da pergunta radical do desejo de cada sujeito sobre o sentido mais ignorado de sua vida. Mas para responder a esta pergunta, primeiro há que saber dar a palavra ao silêncio da angústia, há que fazê-la falar em cada sujeito, um por um. Coisa nada fácil num momento em que sobram instruções e protocolos para silenciá-la de novo. Somente desde aí, entretanto, a angústia nos libertará o sábio segredo de que é resposta, ainda que sempre seja com seu tempo de urgência precipitada.


Tradução: Anna Carolina Nogueira

Revisão: Ana Martha Maia

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