Bartyra
Ribeiro de Castro[1]
O texto de Jacques-Alan Miller
que baliza o X Congresso Internacional da AMP/2016 sobre o corpo falante traz
alguns apontamentos que nos permitem pensar sobre o corpo no autismo: “o corpo
falante, distinto da carne, se mostra apto a figurar como superfície de
inserção, o lugar do Outro do significante. [...] O que faz mistério, mas
permanece indubitável, é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo”. “a
fala outorga o ser a esse animal por um efeito a posteriori.[2]
Penso que o corpo no autismo realiza este mistério, embora o simbólico não
o domine, não o configure pela passagem pelo espelho que não há, deixando o
autista imerso no real.
Serge Cottet[3]
nos lembra que “o corpo é definido como a projeção de
uma superfície, portanto, como uma abstração que o reduz a duas dimensões, não
um dentro, um interior mas, sobretudo, um fora[4];
a imagem narcísica da bela unidade mascara um despedaçamento que a pulsão faz o
corpo sofrer; a pulsão despedaça o gozo do corpo no aspecto de que a fonte
pulsional está na superfície, ou seja, nos buracos do corpo”. O primeiro
Lacan localiza na anatomia as pulsões oral, anal, escópica e genital. No
ultimíssimo, não há mais a vinculação entre inconsciente e pulsão, não mais se define
o corpo em função das pulsões, mas do acontecimento de corpo. Isto nos permite
considerar o autista como um parlêtre
– aquele que sofre os efeitos do choque do significante sobre o corpo. Assim podemos
afirmar que o autista está inscrito na linguagem, mas não no discurso, o que
nos incita a pensar sobre o destino das pulsões, sobre este corpo que se goza e
como este gozo retorna. O corpo que se goza não faz alusão ao circuito
pulsional que implica o Outro. O corpo do autista se caracteriza por ser uma
superfície sem buracos, sem órgãos, sem borda. A borda é o que “permite o
encontro entre o inconsciente simbólico e o funcionamento da pulsão”[5].
A questão fundamental do autismo é que não há inconsciente simbólico, uma vez
que este não se inscreve, que não se pode falar de encadeamento s1 –
s2 no autismo. Eric Laurent sustenta que o gozo do autista retorna
sobre uma borda, uma neo-borda, construída como um tratamento a este gozo.
Há, no ensino de Lacan, quatro momentos
em que ele nos fala das formas de transmissão da ordem simbólica sobre o corpo:
no Seminário 10, trata como incorporação; em A Direção do Tratamento, fala de
ponto de inseminação; e, mesmo na Conferência em Genebra[6]
ele fala de impregnação, mas imediatamente depois ele utiliza o termo
instilação: “a forma pela qual foi instilado um modo de falar pode levar a
marca [...] do fato de que o desejo não existia antes de certa data”.
É possível pensar que haja algum tipo
de alienação no autismo, mesmo que parcial, ao Outro. O estatuto deste Outro
autismo é o de um Outro de síntese, feito de significantes soltos, inclusive,
feito mais de signos que de significantes. Para Jean-Claude Maleval, a
construção deste Outro de síntese se faz pelo autista, através do
estabelecimento de um conjunto de signos e de regras absolutas a serem
seguidas, tentando manter o encontro contingente sob controle. O autista demonstra
o que Lacan, desde o Seminário 4 já preconizava: Não há Outro do Outro, que não
há uma garantia do Outro. O autista atesta que há Um, que há um enxame de
significantes soltos e que, salvo uma alienação ao campo do sentido, a
linguagem pode servir para comunicar absolutamente nada.
O ultimíssimo Lacan muda a forma de se
pensar a pulsão, de um percurso cujo alvo é um objeto que se localiza no Outro
e retorna sobre o corpo buscando uma satisfação – como aparece no Seminário 11;
ao “eco do fato de que há um dizer. Esse dizer, para que ressoe, para que consoe,
[...] é preciso que o corpo lhe seja sensível. [...] Porque o corpo tem muitos
orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido [...] é por este viés que, no
corpo, responde o que chamei de voz” [7]
– Seminário 23 -. A voz, um dizer a ser instilado que antecede ao eco que
ressoa no corpo. Pelo rechaço ao Outro, característico da estrutura autística,
faz falta um corpo sensível, um vazio por onde a voz possa ser incorporada. A
voz do Outro carreia algo de insuportável para o autista que busca colocá-la a
uma distância tal que desta, ele possa se proteger. Por outro lado, o autista
não cede seu objeto voz facilmente. Muitos sequer falam, outros somente o fazem
em momentos de urgência, horror ou desespero e, ainda outros, falam, falam e
falam – sobretudo verbosos! Isto não quer dizer que se possa entendê-los. É um
solilóquio, onde o gozo retorna sobre uma tumba.
Tumba também é um termo que se usa para
os corpos mortos. E a questão do autismo é a recusa ao vivo. Uma mortificação
própria, um esvaziamento de qualquer demanda ao Outro. Este rechaço comparecerá
em diferentes níveis também quando da elaboração do laço possível com o mundo. O
autista, busca tratar o gozo, através de pseudópodes, isto é, os objetos
autísticos – simples ou complexos -, os duplos – inanimados, animados ou
humanos -, e as ilhas de competência. Através destes elementos, o autista
constitui uma neo-borda sobre a qual o gozo retorna, como uma extensão de seu
corpo.
Isto quer dizer que a escolha dos
objetos, a sua complexidade; a construção do duplo e a sua qualidade; além do
estabelecimento de uma ilha de competência, falam do quanto é suportável ou
não, a possibilidade da contingência.
Penso em Jonas, um adolescente do
Courtil, cuja única atividade diária era abrir e fechar a mesma porta,
incansavelmente, durante horas a fio. Aquele movimento repetido daquele corpo
menino-porta era um tratamento possível que ele dava ao gozo, mantendo o Outro
à distância. Alguns de nós tínhamos a tarefa de passar por ali, de vez em
quando, e colocar o pé na porta, cumprimentá-lo com um – Olá, Jonas!, ou de
outra forma qualquer que criasse um acontecimento inesperado por ele. Jonas,
muitas vezes simplesmente seguia a repetição, outras, quando incomodado,
urrava; e outras, quando muito incomodado, corria pelo pátio, arrancava de si
as roupas que tocavam o seu corpo e, ainda mais gravemente, mordia-se aos
pedaços.
[1]
Membro da EBP/AMP
[2]
Miller, J-A. O Inconsciente e o corpo falante.
[3]
Cottet, S. As referências freudianas a respeito do corpo.
[4]
Freud, S. « O eu e o isso », capítulo II, in ESB XIX,
RJ, Imago, 1976.
[5]
Cottet, S., op.cit.
[6]
Lacan, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma, in Opção Lacaniana, nº 23, p. 09.
[7]
Lacan, Jacques. Seminário Livro 23, Zahar Ed. p. 18/19.
Nenhum comentário:
Postar um comentário