O
Observatório de Políticas do Autismo da Escola Brasileira de Psicanálise/Federação
Americana de Psicanálise da Orientação Lacaniana, empenhado em fazer valer o
discurso analítico na sua relação com o discurso do mestre, que se desdobra na
política, na ciência, na saúde e na educação, vem manifestar o seu repúdio à
Lei 13.438, sancionada pelo Presidente Michel Temer em 26 de abril de 2017, com
o apoio de parlamentares de vários partidos, que altera o artigo 14o
do Estatuto da Criança e do Adolescente, para tornar obrigatória a adoção, pelo
Sistema Único de Saúde (SUS), de protocolo que estabeleça padrões para a
avaliação de riscos para o desenvolvimento psíquico das crianças. Dita lei tem
180 dias para ser regulamentada, e é nesse espaço de tempo que nos cabe
dirigir-nos ao Ministério da Saúde para nos manifestarmos contra a sua
regulamentação.
Alguns
membros da EBP participam, desde 2012, do Movimento Psicanálise, Autismo e
Saúde Pública (MPASP), criado por psicanalistas de várias orientações, para
lutar contra a tentativa de reservar às terapias cognitivo-comportamentais
(TCC) o tratamento dos autistas. Sabemos o quanto essa tentativa fracassou, na
França e na Bélgica, graças ao Movimento desencadeado por nossos colegas da AMP
que lutaram, ativamente, contra a aprovação de qualquer lei que excluísse a
psicanálise do tratamento dos autistas.
Nesse
momento em que estamos particularmente atentos às relações do discurso
analítico com o discurso do mestre, consideramos que protocolos destinados a
instrumentalizar os pediatras do SUS para detectar anomalias do desenvolvimento
infantil entre 0 e 18 meses, correm o risco de patologizar indevidamente a
primeira infância e ampliar desmesuradamente as hipóteses diagnósticas de
autismo, estigmatizar e segregar essas crianças, além de interferir
negativamente no desejo da mãe, executando em ato aquilo que a avaliação
procuraria evitar[1].
Desde 2007, temos feito uma leitura crítica aos protocolos preventivos,
sustentada nos argumentos de Jacques-Alain Miller em seu debate, com
Jean-Claude Milner, publicado no pequeno volume: Você quer mesmo ser avaliado?[2]
A
lei 13.438, ao determinar a obrigatoriedade da aplicação, a todas as crianças,
nos seus primeiros 18 meses de vida, de protocolo ou outro instrumento
destinado à detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento, de risco
para seu desenvolvimento psíquico, não
assegura, de forma alguma, um acompanhamento adequado para essas crianças. Já
proliferam os cursinhos de formação de pediatras para tal detecção precoce, por
profissionais que não têm, na maioria das vezes, a formação adequada para lidar
com o sintoma, construído, no que concerne à psicanálise, sob transferência, e
não necessariamente destinado a ser eliminado.
A
reportagem de capa da Revista Veja de
26 de julho de 2017 é um sinal do tratamento que vem sendo dispensado ao
autismo na atualidade, tentando eliminar a psicanálise do seu horizonte. Mais preocupante ainda é convocar a população
a responder ao M-CHAT (Modified Check
List for Autism for Todlers), do qual Veja
publicou 10 questões destinadas a alertar os pais de potenciais autistas.
Alguns
colegas psicanalistas, com importante percurso nas políticas públicas, têm se
manifestado enfaticamente contra a instituição dos protocolos preventivos e a
regulamentação da lei 13438, e nos convocam a apoiar seu texto de análise
crítica, que traz proposições de ações para enfrentar o problema em questão[3].
Com argumentos claros e bem fundamentados, os colegas demonstram a inadequação
e estranheza da aprovação da lei 13.438, os riscos de patologização da
infância, nos lugares mais recônditos do Brasil, assim como um estudo
comparativo com outros países, com uma nítida convergência na opinião de que o
rastreamento de crianças pequenas não deve ser realizado. Além de apontar os
riscos de tal rastreamento obrigatório em consultas pediátricas no SUS, com o
desmonte do estado democrático de direito e a redução das políticas sociais, os
autores deste documento apontam caminhos
possíveis no campo das políticas públicas, sem criar uma inflação de
diagnósticos cujos beneficiários não serão, seguramente, as crianças
brasileiras e suas famílias. Aqueles que quiserem conhecer e apoiar este
documento podem escrever para o seguinte endereço: alerta.lei.13438@gmail.com.
Devemos
examinar com todo o cuidado a suposta epidemia de autismo dos últimos anos, que
coincide com as sucessivas revisões do DSM e a inclusão, no Transtorno do
Espectro Autista, de patologias que até 1980 não faziam parte dessa categoria.
O DSM absorve progressivamente outros diagnósticos, ao mesmo tempo que elimina
a categoria das psicoses infantis, estendendo arbitrariamente a categoria do
autismo. O transtorno do Espectro Autista, juntamente com o Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade e o Transtorno do Espectro Bipolar promovem
uma excessiva medicalização da infância, uma falsa etiologia genética e toda a
indústria de testes e tratamentos preconizados. Estamos a poucos passos de uma
infância refém da indústria farmacêutica, como bem demonstra Agnès Aflalo em
seu livro Autismo: novos espectros, novos
mercados[4].
A
pretensão científica dos novos diagnósticos, ao contrário do que se poderia
pensar, não se apoia em novas descobertas ou em trabalhos científicos
confiáveis, mas muitas vezes, em trabalhos encomendados pela indústria
farmacêutica. É toda a questão da objetividade da pesquisa biomédica, que não
pode ser aplicada indistintamente às demais especialidades médicas e à
psiquiatria. Quando esta última se afasta da psicanálise em busca de uma
validação científica, ela acaba se perdendo em um cientificismo perigoso, no
qual a patologização do comportamento infantil cria um fardo para as crianças,
suas famílias e a sociedade. É assim que o autismo, entre 1993 e 2004, tem sua
prevalência multiplicada cinco vezes. Não há apenas o risco de prescrições
injustificadas, mas também de descaso com a palavra dos pacientes e suas
famílias, por menos que esses pacientes venham a se expressar verbalmente. As
TCC, aliadas do DSM, contestam as psicoses infantis em favor do Transtorno do
Espectro Autista e promovem os métodos de tratamento ABA e TEACCH.
Na
psicanálise, o sintoma é fabricado com palavras, e também tratado com palavras.
Ele não é objetivo, e o psicanalista faz parte dele. A criminalização dos
comportamentos infantis e o silêncio promovem as passagens ao ato. A
psicanálise, mais do que uma ciência, é a arte de tratar, caso por caso. Os pediatras,
por mais boa vontade que tenham, geralmente não estão familiarizados com os
conceitos de inconsciente, transferência e pulsão, balizas fundamentais para a
escuta das crianças. A psicanálise, como queria Freud, não é uma prática
médica, mas antes, profana. Se o real da libido não é levado em conta, só resta
o real biológico, buscado com sofreguidão pelas hipóteses cientificistas.
O
Observatório do autismo da EBP/FAPOL segue na batalha do autismo[5]:
batalha com as políticas públicas que impõem tratamentos padrões a partir de
etiquetas, enquanto a política da psicanálise enfatiza o ser falante e seu modo
singular de gozo; batalha no trabalho com os pais como parceiros, esvaziando a
ideia de que seriam culpados pelo autismo de seu filho; batalha para marcar a
diferença entre a psicanálise e os métodos de aprendizagem que impõem um saber
prévio ao sujeito autista, em lugar de um tratamento sob medida; batalha contra
os métodos de avaliação que apostam na prevenção, nos diagnósticos padronizados
e na medicalização da infância.
A
psicanálise é uma forma de fazer laço social. Entramos na batalha do autismo,
para defender a presença da psicanálise no tratamento desses sujeitos, que
podem ter muita dificuldade para entrar no laço com o outro. A prática com os
autistas demonstra a importância, para eles, de fazer laço. Eles o fazem, hoje,
graças a suas famílias, seus educadores, seus terapeutas, e todos os
profissionais que se interessam por suas maneiras bem singulares de estar no
mundo. É por isso que convidamos todos aqueles que trabalham e acreditam na
importância da presença da psicanálise na abordagem do autismo, a estarem
alertas em relação à Lei 13.438.
Observatório de
Políticas do Autismo da EBP/FAPOL
[1] PIMENTA, P. Relação mãe-filho sob medida: a prevenção
do Real. IPSM-MG, 28.03.2007.
[2] Cf. MILLER, J.-A. e MILNER, J.-C. Évaluation. Entretiens sur une machine d’imposture. Paris, Agalma, 2004.
[3] Cf.
MASCARENHAS, C., KATZ, I., SURJUS, L., COUTO, M. C. V. e LUGON, R. “Sobre a lei
13.438, de 26/04/2017: Riscos e Desafios”.
[4] AFLALO, A. Autisme:
nouveaux spectres, nouveaux marches. Paris, Navarin Le Champ
freudien, 2012.
[5] MAIA, A. M. W. As crianças do Um sozinho – a loucura
na infância. Inédito.
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