quarta-feira, 2 de agosto de 2017

O ACPOL rumo ao Observatório sobre Políticas do Autismo da EBP. FAPOL


Gleuza Salomon

Membro do Observatório sobre Políticas do Autismo da EBP. FAPOL


O Ateliê de Clínica Psicanalítica da Orientação Lacaniana (ACPOL) prosseguiu em 2017 tanto com as atividades de controle individual quanto as da clínica, entre várias outras. Trataram-se de atividades que ocorreram ao longo do ano, notadamente nos dias 24 de junho, 8 e 22 de julho, que se deram em conjunto com os colegas psicanalistas, pedagogos, estudantes de psicologia, pais e familiares de autistas. Nessas reuniões foram priorizados os Estudos de Caso, provenientes desses participantes do Ateliê, constituindo-se assim na base da Conversação Clínica. Contou-se com apresentações de cada colega, nas quais inseriram-se pelo desejo de transmitir algo de sua experiência pessoal com o autismo, seja na escola, hospital, ou clínica particular.

Nessas atividades, importa destacar, esteve em evidência a observação que o psicanalista suíço François Ansermet, fez em entrevista que concedeu ao Boletim Pequena Infância em 1987, ocasião em que tratou da sua prática médica, enquanto responsável pela UTI perinatal do serviço de pediatria em Lausanne. Notadamente o trecho em que observou que “as questões que são postas a partir do autismo para a medicina perinatal, reúnem de um certo modo, problemas situados pelo autismo. O desafio da psicanálise na clínica perinatal é o nascimento do sujeito. Do mesmo modo, o autismo pode ser visto como uma situação clínica que faz com que o sujeito se petrifique no processo mesmo da sua emergência.” Da direção clínica que considera o autismo como “O Estado Originário Do Sujeito” extraiu-se o conceito que balizou o Ateliê e que permeou o debate.

No dia 8 de julho, por exemplo, a conversação se iniciou com a intervenção de Fernanda Baptista, que discorreu sobre a clínica com bebês e a proposta de protocolos para a Intervenção Precoce nos possíveis transtornos mentais na primeira infância, no caso o protocolo “Preaut”, que antecedeu o IRDI (Indicadores Clínicos Para o Desenvolvimento Infantil). Baptista se perguntou sobre o uso e aplicação desses protocolos, e sobre qual fundamentação teórica psicanalítica justifica a intervenção precoce no bebê e sobre o lugar que o psicanalista pode ocupar neste processo. Essa conversação teve como base de pesquisa o texto “Relação Mãe-filho sob medida: a prevenção do Real” de Paula Pimenta, integrante do Observatório do Autismo da EBP, e do texto de Maria Cristina Kupfer, referente ao IRDI, intitulado “Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica.” Nele Kupfer relata que durante os exames foram anotados os indicadores clínicos (IRDI) presentes, ausentes e não verificados. Nesta pesquisa, é a ausência de indicadores que sugere um risco para o desenvolvimento da criança. Assim, os indicadores, quando presentes, são indicadores de desenvolvimento, e quando ausentes, são indicadores de risco para o desenvolvimento.1

O que se visa por meio deste protocolo preventivo é fundar um olhar da medicina pediátrica sobre a vida psíquica do bebê e detectar precocemente, por exemplo, o autismo. A crítica à proposta de protocolos preventivos se fundamenta n o princípio da clínica da orientação lacaniana que é a “insondável decisão do ser”. Segundo ela trata-se sempre de uma escolha originária e precoce do sujeito bebê que se reatualiza ao longo da sua vida.

Esta temática foi central no acontecimento extraordinário que se deu, coincidentemente, no mesmo dia 8 de julho de 2017, na cidade de Turim, na Accademia Torinese dell'inatteso, que se deu às lufadas do movimento milleriano intitulado “la movida Zadig”, que aborda “o instante de ver”, no qual Miller trabalha a proximidade filológica da raiz da palavra escolha que, por primeiro, em francês, significou ver. Foi no âmbito desta iniciativa em Turim que Miller fundou o Seminário de Política Lacaniana, que inscreveu no Ano Zero do Campo Freudiano. Esse memorável seminário de Turim foi intitulado "Os heréticos". Mas, o que teve a ver esse encontro na Itália com o Ateliê da mesma data em Curitiba?

Ocorre que no final da segunda parte desse Seminário, que ocorreu dia 22 de julho, Jacques-Alain Miller introduziu, de modo enfático, a questão da escolha originária. Miller defende que a orientação lacaniana permite pensar que não se faria pela via do discurso da técnica, forcluindo o discurso do analista, um protocolo preventivo. A generalização de signos que regulariam uma padronização do desenvolvimento infantil, por meio de uma normatização da relação mãe-bebê, instaura um novo determinismo, que forclui o sujeito, ao mesmo tempo que desconsidera a possibilidade de uma escolha singular, contingente, do sujeito bebê. Quanto à escolha originária do sujeito Jacques-Alain Miller ressalta que “[...] temos que reconhecer a presença da escolha forçada, expressão paradoxal de Lacan, que designa a escolha que fazemos quando não há escolha, mas é uma escolha, e designa o fato de que não há puro determinismo e para que o sujeito se inscreva por uma escolha, essa acontece na relação da causa ao efeito. Mas, nessa relação o sujeito ainda deve consentir. E, se ele recusar esse consentimento? Qual seria o resultado da recusa do sujeito da escolha forçada? Consistiria em colocar o sujeito na condição de retardatário.” Na conversação, Jacques-Alain Miller designou a disparidade e a coexistência do discurso da técnica e do discurso analítico na nossa época, que não cultiva mais o discurso do mestre. O significante mestre não está mais no comando do laço social, e que isso, como pensava Lacan, permite que no horizonte da subjetividade de nossa época venha se perfilar ao discurso do analista, como parte dela. Como seria esse modo de coexistência desses díspares discursos no laço social? Este é o verdadeiro significado de la movida Zadig, que é a psicanálise no campo da política, através do discurso do analista.

O texto de Pimenta considera que a “psicanálise se interessa pelo que é único em cada sujeito, acolhendo-o como se fosse seu primeiro caso, incomparável. Na avaliação do Protocolo IRDI, o sujeito encontra-se elidido, o que viria corroborar com a orientação lacaniana.”2

Já Kupfer destaca em seu texto que “O conjunto de 31 indicadores do IRDI foi construído a partir dos seguintes eixos teóricos e é deles considerado uma expressão fenomênica: suposição do sujeito, estabelecimento da demanda, alternância presença/ausência e função paterna. A delimitação desses eixos baseou-se nos Três ensaios para uma teoria sexual (Freud, 1905), Além do princípio do prazer (Freud, 1920) e A dissolução do complexo de Édipo (Freud, 1924) e nos seminários 4 e 5 de J. Lacan (Lacan, 1995, 1999). ”

Ao se considerar acima os eixos teóricos que fundamentaram o IRDI, buscarei comentar alguns destes que sustentaram a criação deste protocolo preventivo:

Em A suposição do sujeito, o termo “suposição” configura uma relação do sujeito com o Outro que se supõe o saber, o que significa que para se saber, o sujeito tem que ir ao campo do Outro, se submeter ao Outro para adquirir um saber. No texto O Like do saber atual é um “objeto atual”? que contempla a mudança de paradigma na questão da suposição de saber cujo sujeito instaura a transferência analítica, essa mudança é abordada. Nele se diz que o “objeto atual”, designação de Jacques-Alain Miller para os gadgets, como os smartfones, por exemplo, oferece ao sujeito uma multiplicidade de opções que lhe causa uma “hesitação infinita”. Tal incidência do mundo virtual provoca uma mudança radical na aquisição do saber para um sujeito. Diferente do saber que seria acessado passando pelo desejo do Outro e que requereria estabelecer uma estratégia para adquirir o saber, instaurando o amor ao saber. Com os “objetos atuais” o acesso ao saber se dá via autoerotismo. Nesse contexto o corpo é esse Outro a que se encontra submetido ao gozo autista do “objeto atual”, que lhe permite aceder ao saber por uma via direta, que ele encontra na “nuvem”, no mundo virtual. Neste estado de coisas o sujeito não goza, é gozado pela técnica e/ou pelo mercado. Esta constatação de tal atualidade foi, de alguma maneira, antecipada no último ensino de Lacan, ao incluir o imaginário no simbólico. O achatamento provocado por essa inclusão equivale ao semblante que, por sua vez, produz repugnância ao real: reduz o real a dejeto. Miller ressalta que “vivemos uma época que nega o real de forma consentida.”3 Trata-se, por evidente, de um contexto autista de toda uma geração.

Aplicando a assertiva acima, de Miller, seria o IRDI uma tentativa de tapar o real, eludir “a insondável decisão do ser”, uns dos nomes do real em Lacan? E, seria o IRDI uma tentativa de responder de forma equivocada à aquisição do saber, sem que, para isso, o sujeito aceda ao Desejo do Outro? Esse novo modo de saber por meio do discurso da técnica produz autismos, e sujeitos acoplados aos objetos atuais? Vemos que o DSM5 ao ampliar o espectro autista, além de uma inflação diagnóstica, ele vem associar numa mesma categoria clínica o gozo autista, os autismos e o sujeito autista.



(continua)

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