quinta-feira, 25 de junho de 2015

Terapia da Afinidade para os autistas?

Terapia da Afinidade para os autistas?[1]

pelo Coletivo de Praticantes com autistas

A Terapia da Afinidade inventada por Ron Suskind e Dan Griffin em 2014 possui muitas propriedades notáveis que levaram nosso coletivo de praticantes com autistas a divulgá-la na França e na Europa sustentando a organização, na Universidade de Rennes 2, do primeiro colóquio universitário a ela consagrado. Nos dias 5 e 6 de março de 2015, universitários e praticantes vindos do mundo inteiro puderam trocar ideias com Ron Suskind, jornalista americano de renome, laureado com o Prêmio Pulitzer em 1995, bem como com seu filho e com Owen Suskind. A audiência era tão grande que foi necessário abrir um segundo anfiteatro para o público. No outro, cinco associações de pais de crianças autistas vieram manifestar  a sua adesão a uma abordagem plural do autismo, justificada pelas incertezas atuais da ciência: a etiologia do autismo permanece desconhecida;  sua definição flutua, os métodos de tratamento, mesmo quando recomendados pela Alta Autoridade de Saúde não estão “validados pela ciência”. 
A Terapia da Afinidade tem como foco a escolha criativa do sujeito, incitando-o a desenvolver a sua paixão: os filmes de Walt Disney, para Owen Suskind, que deles falou longamente; as plantas carnívoras, das quais Alain Ripaud se referiu; Kiriku e a feiticeira, em primeiro lugar, e depois Minecraft, para Théo, cujo percurso foi relatado por sua mãe, Valérie Gay, etc. Esta terapia parte de uma decisão e de um saber do autista – com isso, ela se opõe aos métodos preconizados atualmente, que priorizam superar as deficiências  através de técnicas de aprendizagem.  
Como a paixão de um autista é sempre singular, deduz-se daí que essa terapia não se faz a não ser no caso a caso. Ela está para ser inventada com cada um. Nisso, ela se diferencia claramente dos métodos atualmente propostos e julgados como tendo validade para todos, através de pequenas adaptações.
Esses dois princípios maiores, a proximidade do caso a caso e o apoio sobre uma invenção do sujeito, convergem de maneira impressionante com a psicanálise que orienta a coletividade, daí o nosso entusiasmo em estabelecer uma parceria com um colóquio desse tipo.
Nessa ocasião, descobrimos uma terceira propriedade notável da Terapia da Afinidade. Ali, onde não esperávamos, encontramos alguns blogs que exprimiam um ódio cego contra a própria realização do colóquio. O que deve ser ressaltado, é que neles não se criticava a própria Terapia da Afinidade. No estado atual das disputas concernentes ao autismo, é impressionante que haja uma unanimidade em relação a ela. Todos reconhecem os méritos da Terapia da Afinidade; a maior parte até mesmo afirma que já faz. O que é denunciado é a aproximação entre a Terapia da Afinidade e a psicanálise. É verdade que isso pode parecer totalmente obscuro aos que escrevem nesses blogs, porque a concepção de psicanálise que eles endossam mais parece um filme de propaganda que a caricatura; ela se encontra unificada artificialmente pelos preconceitos da organizadora refletidos por sua montagem, de maneira que a diversidade das correntes que a atravessam é completamente desconhecida.
 A Terapia da Afinidade "não é nova", dizem eles nesses blogs, e a prova de que ela não tem nada a ver com a psicanálise é que a Terapia da Afinidade “nós sempre fizemos”. No entanto, o que eles acreditam fazer não é o que nós defendemos. Ela não consiste em adaptar o método de aprendizagem utilizando como um reforçador tal ou qual afinidade; ela envolve a invenção de uma nova cura para cada um: com desenhos animados para um, com sinos para o outro, com trens para um terceiro, por vezes com um animal, etc. A Terapia da Afinidade não é o desenvolvimento de um caminho já traçado; é a criação de um percurso sob medida para cada autista. No método "ABA", o mais elogiado pelos críticos do simpósio, as invenções das crianças são percebidos como "obsessões" que dificultam o aprendizado; elas são comparadas com comportamentos aditivos; às vezes consideradas como manipulação, devem ser claramente combatidas. Como os defensores do método ABA teriam tratado a paixão de Owen por filmes de Walt Disney?
No entanto, na década de 1970, a "pratica entre vários", que é o trabalho cotidiano de muitas instituições orientadas pelo ensino de Lacan, e que é executado por praticantes de diversas origens (psicólogos, educadores, professores de escolas, fonoaudiólogos, profissionais da psicomotricidade, artistas, etc.), tomam como seu princípio maior tornarem-se parceiros da criança, o que implica uma individualização radical do tratamento, e que situa a sua fonte principal nas invenções da criança autista, por menores que sejam. Ninguém, por exemplo, ensinou-lhe a sacudir um barbante na frente de seus olhos, e, se ele faz isso com tanta frequência é porque, supomos, ter essa descoberta uma função importante para ele. Os autistas de alto nível confirmam isso em seus escritos. Fazer-se parceiro da criança é o princípio que orienta a prática do Courtil, tal como é evidenciado no filme de Mariana Otero – A céu aberto – exibido no Simpósio.
Em seus fundamentos, as abordagens psicodinâmicas (Terapia da Afinidade, psicanálise, terapia de jogos...) se opõem radicalmente aos métodos de aprendizagem. As primeiras visam construir o sujeito tomando como ponto de apoio suas invenções, as segundas procuram moldar os comportamentos levando em conta o saber do educador como o motor principal.
É certo que mais recentemente a oposição diminuiu um pouco. Algumas paixões do autista encontram lugar nas atividades de aprendizagem, sendo utilizadas como reforçadoras de tarefas, isto é, como recompensas, enquanto os psicanalistas introduzem em sua prática modalidades iniciadas pelos cognitivistas, notadamente estruturando o espaço e o tempo. Será o fosso preenchido parcialmente? Ele permanece, ainda, difícil de atravessar.
No entanto, é inegável que além dos debates acalorados, ou, talvez, graças a eles, houve uma evolução. Alguns esboços de convergência estão aparecendo na abordagem atual do autismo, pois, na conclusão do Colóquio, muitas afirmações de um dos maiores especialistas da abordagem cognitivista do autismo, o professor Laurent Mottron, pesquisador canadense, foram tomadas palavra por palavra. Suas conclusões basearam-se em pesquisas totalmente alheias à abordagem psicodinâmica, mas estão apoiadas sobre a experiência de autistas de alto nível. “Os packages são uma trapaça”, diz. Ele considera que, para cada autista, é necessário proceder através de um caminho progressivo, em função de suas capacidades especiais. Ele constata, como tantos outros, que, é a partir dos interesses específicos, que chamamos afinidades, que se desenvolvem competências cognitivas. “Quando se passa um tempo enorme em uma coisa, sublinha, passa-se menos tempo em outra”. Há muito é considerado como uma espécie de defeito do autista a falta de generalização, capacidades inúteis, etc. De fato, insiste, é necessário tomar isto como um fato: “é assim que as coisas se passam no autismo”. Ele convoca, tal como Ron Suskind, Dan Griffin e nós mesmos, a que se apoie sobre o interesse específico da pessoa autista a fim de desenvolver as suas capacidades. Do mesmo modo, ele encoraja a respeitar a alteridade do autista.
Convidamos [todos] a conhecer os desenvolvimentos da Terapia da Afinidade e os métodos psicodinâmicos de tratamento do autismo consultando os seguintes sites: o de Ron Suskind, Lifeanimated.net, e o site universitário affinitytherapy.sciencesconf.org. 
Para mais informações sobre a coletividade de praticantes com autistas: http://www.autistes-et-cliniciens.org                                                                                                  
Post Scriptum: Sobre algumas ideias falsas mais difundidas em relação à questão do autismo:
- A prática institucional de tratamento dos autistas orientada pelo ensino de Lacan não utiliza o packing, nem a piscina para crianças, nem a violência. Sobre esse último ponto o mesmo não pode ser dito em relação ao método ABA – contra o qual se rebelaram muitos autistas de alto nível. A justiça confirmou que os mal-tratos – denunciados por diapart na alta direção da ABA na França – não são difamações (Dufau S., Autismo: Vinca Rivière e a associação Pas à Pas perdem seu processo contra a Mediapart” http://goo.gl/cEbNig)
- Se a comunidade de praticantes e os organizadores do Colóquio defendessem uma culpabilização dos pais, é pouco provável que cinco associações de pais de crianças autistas, bem informados, portanto, dos conflitos atuais, fizessem intervenções no Colóquio para relatar as experiências bem sucedidas com a Terapia da Afinidade e para defender uma abordagem pluralista do autismo, não excluindo aí os modelos psicodinâmicos. 
- As poucas referências à “mãe crocodilo” feitas por Lacan, não dizem respeito, em absoluto, ao autismo. As teses de Bettelheim relativas à implicação dos pais na etiologia do autismo nunca foram unânimes entre os psicanalistas: a partir de 1965, Tustin se opôs fortemente a elas, e não parou mais de fazê-lo. Sua influência sobre a abordagem psicanalítica não era menor do que a de Bettelheim.
- Consideramos o autismo como um funcionamento subjetivo específico, e não como uma psicose. Jean-Claude Maleval explica o porquê em seus trabalhos.
- A prática psicanalítica não utiliza a terapia convulsiva (às vezes prescrita na psiquiatria), e não defende os eletrochoques. Por outro lado, a Srª. Vinca Rivière, defensora do método ABA, exalta as virtudes deles. (Dufau S., “Autismo: uma crônica embaraçosa para um centro sempre citado”, Mediapart, 3 de abril de 2012, www. mediapart.fr).
- A psicanálise não deve ser confundida com a psiquiatria. Há meio século, a psicanálise era a dominante na psiquiatria francesa; hoje, as neurociências constituem a referência privilegiada. A psicanálise se presta ao diálogo com o paciente; as neurociências examinam seu sistema nervoso. Observadores independentes sustentam que a perda de referência da psicanálise pela psiquiatria contribuiu muito para a sua desumanização.  (Cf. Coupechoux P., Um mundo de loucos. Como nossa sociedade maltrata seus doentes mentais, Paris, Seuil, 2006)
- “A” Psicanálise não existe. Ela é atravessada por várias correntes, e, em relação ao autismo, sustenta, às vezes, teses contraditórias. Isto também é verdade em relação a várias terapias comportamentais e cognitivo-comportamentais (elas não defendem o choque elétrico). Isso ainda é verdade em relação às recomendações da Alta Autoridade da Saúde cujas recomendações científicas entram, às vezes, em conflito com suas próprias recomendações éticas. Ela incentiva a se levar em conta “os gostos, os ritmos, as capacidades”, e, mesmo, “os desejos” próprios da criança autista! No entanto, ela não desaconselha o método ABA!
- A HAS [Autoridade Superior de Saúde], em 2012, recomendou para que a ABA, a TEACCH e Denver cuidassem das crianças autistas, não em nome de uma ciência triunfante, mas por falta de melhores. Ela constata, na verdade, no mesmo documento, que nenhum desses métodos tem validade científica (elas não têm mais do que uma “presunção de eficácia”; por vezes, uma “evidência fraca”). A HAS considera que todos esses métodos têm mais fracassos do que sucessos. Isto deveria incentivar certa moderação nas recomendações.
- A HAS não rejeitou o tratamento de crianças autistas pela psicanálise ou pela psicoterapia institucional: ela não tomou partido. Há uma grande diferença entre a qualificação “não consensual”, que lhe foi atribuída, e a “não recomendação”.
- A qualificação “não consensual” relativa à psicanálise e à psicoterapia institucional se justifica pela ausência de estudos baseados na metodologia da HAS (que rejeita o que é recomendado como mais operatório pelos psicanalistas que é o estudo longitudinal de caso). Ora, um estudo recente do INSERM (2014), favorável aos tratamentos psicodinâmicos, acaba de preencher essa lacuna: Thurin J.-M., Thurin M., Cohen D. & al.Abordagens psicoterapêuticas do autismo: resultados preliminares a partir de 50 estudos intensivos de caso”. Neuropsychiatrie de l’enfance et de l’adolescence 62, 2014, p. 102-118.
- Deve-se observar que as divergências, ao contrário do que vem ocorrendo, devem ser expressas através de argumentos racionais, e não pelas calúnias habituais, que, de imediato, com poucas palavras, procuram impedir a troca de ideias. 

1 Suskind R., Vida, animação: A história de Unidos para vencer, Herois e Autismo [Life, Animated : A story of Sidekicks, Heroes and Autism], Kingswell, California, 2014.
Tradução: Luis Flávio S. Couto





[1] Publicado em Lacan Cotidiano nº 489, em 13 de março de 2015.

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