Terapia da Afinidade para os autistas?[1]
pelo Coletivo de Praticantes com autistas
A Terapia da
Afinidade inventada por Ron Suskind e Dan Griffin em 2014 possui muitas
propriedades notáveis que levaram nosso coletivo de praticantes com autistas a
divulgá-la na França e na Europa sustentando a organização, na Universidade de
Rennes 2, do primeiro colóquio
universitário
a ela consagrado. Nos dias 5 e 6 de março de 2015, universitários e praticantes vindos do mundo
inteiro puderam trocar ideias com Ron Suskind, jornalista americano de renome,
laureado com o Prêmio Pulitzer em 1995, bem como com seu filho e com Owen
Suskind. A audiência era tão grande que foi
necessário abrir um segundo anfiteatro para o público. No outro, cinco
associações de pais de crianças autistas vieram manifestar a sua adesão a
uma abordagem plural do autismo, justificada pelas incertezas atuais da
ciência: a etiologia do autismo permanece desconhecida; sua definição
flutua, os métodos de tratamento, mesmo quando recomendados pela Alta
Autoridade de Saúde não estão “validados pela ciência”.
A Terapia da
Afinidade tem como foco a escolha criativa do sujeito, incitando-o a
desenvolver a sua paixão: os filmes de Walt Disney, para Owen Suskind, que
deles falou longamente; as plantas carnívoras, das quais Alain Ripaud se
referiu; Kiriku e a feiticeira, em primeiro lugar, e depois Minecraft,
para Théo, cujo percurso foi relatado por sua mãe, Valérie Gay, etc. Esta
terapia parte de uma decisão e de um saber do autista – com isso, ela se opõe aos
métodos preconizados atualmente, que priorizam superar as deficiências através de técnicas de aprendizagem.
Como a paixão de
um autista é sempre singular, deduz-se daí que essa terapia não se faz a não ser no caso a caso. Ela está para ser
inventada com cada um. Nisso, ela se diferencia claramente dos métodos
atualmente propostos e julgados como tendo validade para todos, através de
pequenas adaptações.
Esses dois
princípios maiores, a proximidade do caso a caso e o apoio sobre uma invenção
do sujeito, convergem de maneira impressionante com a psicanálise que orienta a
coletividade, daí o nosso entusiasmo em estabelecer uma parceria com um
colóquio desse tipo.
Nessa ocasião,
descobrimos uma terceira propriedade notável da Terapia da Afinidade. Ali, onde
não esperávamos, encontramos alguns blogs que exprimiam um ódio cego contra a
própria realização do colóquio. O que deve ser ressaltado, é que neles não
se criticava a própria Terapia da Afinidade. No estado atual das disputas
concernentes ao autismo, é impressionante que haja uma unanimidade em relação a
ela. Todos reconhecem os méritos da Terapia da Afinidade; a maior parte até
mesmo afirma que já faz. O que é denunciado é a aproximação
entre a Terapia da Afinidade e a psicanálise. É verdade que isso pode parecer
totalmente obscuro aos que escrevem nesses blogs, porque a concepção de psicanálise que eles endossam mais parece
um filme de propaganda que a caricatura; ela se encontra unificada
artificialmente pelos preconceitos da organizadora refletidos por sua montagem,
de maneira que a diversidade das correntes que a atravessam é completamente
desconhecida.
A
Terapia da Afinidade "não é nova", dizem eles nesses blogs, e a prova
de que ela não tem nada a ver com a psicanálise é que a Terapia da
Afinidade “nós sempre fizemos”. No entanto, o que eles acreditam fazer não é o
que nós defendemos. Ela não
consiste em adaptar o método de aprendizagem utilizando como um reforçador tal
ou qual afinidade; ela envolve a invenção de uma nova cura para cada um: com
desenhos animados para um, com sinos para o outro, com trens para um terceiro,
por vezes com um animal, etc. A Terapia da Afinidade não é o desenvolvimento de
um caminho já traçado; é a criação de um percurso sob medida para cada autista.
No método "ABA", o mais elogiado pelos críticos do simpósio, as invenções das crianças são percebidos como "obsessões"
que dificultam o aprendizado; elas são comparadas com comportamentos aditivos;
às vezes consideradas como manipulação, devem ser claramente combatidas. Como
os defensores do método ABA teriam tratado a paixão de Owen por filmes de Walt
Disney?
No
entanto, na década de 1970, a "pratica entre vários", que é o
trabalho cotidiano de muitas instituições orientadas pelo ensino de Lacan, e
que é executado por praticantes de diversas origens (psicólogos, educadores,
professores de escolas, fonoaudiólogos, profissionais da psicomotricidade,
artistas, etc.), tomam como seu princípio maior tornarem-se parceiros da
criança, o que implica uma individualização radical do tratamento, e que situa
a sua fonte principal nas invenções da criança autista, por menores que sejam.
Ninguém, por exemplo, ensinou-lhe a sacudir um barbante na frente de seus
olhos, e, se ele faz isso com tanta frequência é porque, supomos, ter
essa descoberta uma função importante para ele. Os autistas de alto nível
confirmam isso em seus escritos. Fazer-se parceiro da criança é o princípio que
orienta a prática do Courtil, tal como é evidenciado no filme de Mariana Otero
– A céu
aberto – exibido no Simpósio.
Em seus
fundamentos, as abordagens psicodinâmicas (Terapia da Afinidade, psicanálise,
terapia de jogos...) se opõem radicalmente aos métodos de aprendizagem. As
primeiras visam construir o sujeito tomando como ponto de apoio suas invenções,
as segundas procuram moldar os comportamentos levando em conta o saber do
educador como o motor principal.
É certo que mais
recentemente a oposição diminuiu um pouco. Algumas paixões do autista encontram
lugar nas atividades de aprendizagem, sendo utilizadas como reforçadoras de
tarefas, isto é, como recompensas, enquanto os psicanalistas introduzem em sua
prática modalidades iniciadas pelos cognitivistas, notadamente estruturando o
espaço e o tempo. Será o fosso preenchido parcialmente? Ele permanece, ainda,
difícil de atravessar.
No entanto, é inegável que além dos debates acalorados, ou,
talvez, graças a eles, houve uma evolução. Alguns esboços de convergência estão
aparecendo na abordagem atual do autismo, pois, na conclusão do Colóquio,
muitas afirmações de um dos maiores especialistas da abordagem cognitivista do
autismo, o professor Laurent Mottron, pesquisador canadense, foram tomadas
palavra por palavra. Suas conclusões basearam-se em pesquisas totalmente
alheias à abordagem psicodinâmica, mas estão apoiadas sobre a experiência de
autistas de alto nível. “Os packages são uma trapaça”, diz. Ele considera que, para cada autista, é necessário
proceder através de um caminho progressivo, em função de suas capacidades
especiais. Ele constata, como tantos outros, que, é a partir dos interesses
específicos, que chamamos afinidades, que se desenvolvem competências
cognitivas. “Quando se passa um tempo enorme em uma coisa, sublinha, passa-se
menos tempo em outra”. Há muito é considerado como uma espécie de defeito do
autista a falta de generalização, capacidades inúteis, etc. De fato, insiste, é
necessário tomar isto como um fato: “é
assim que as coisas se passam no autismo”. Ele convoca, tal como Ron Suskind, Dan Griffin e nós mesmos, a que
se apoie sobre o interesse específico da pessoa autista a fim de desenvolver as
suas capacidades. Do mesmo modo, ele encoraja a respeitar a alteridade do
autista.
Convidamos
[todos] a conhecer os desenvolvimentos da Terapia da Afinidade e os métodos
psicodinâmicos de tratamento do autismo consultando os seguintes sites: o de
Ron Suskind, Lifeanimated.net, e o site universitário affinitytherapy.sciencesconf.org.
Para
mais informações sobre a coletividade de praticantes com autistas: http://www.autistes-et-cliniciens.org
Post Scriptum: Sobre algumas
ideias falsas mais difundidas em relação à questão
do autismo:
- A prática
institucional de tratamento dos autistas orientada pelo ensino de Lacan não
utiliza o packing, nem a piscina para crianças, nem a violência. Sobre
esse último ponto o mesmo não pode ser dito em relação ao método ABA – contra o
qual se rebelaram muitos autistas de alto nível. A justiça
confirmou que os mal-tratos – denunciados
por Médiapart na alta direção da ABA na
França – não são difamações (Dufau S., “Autismo:
Vinca Rivière
e a associação Pas à Pas perdem seu processo contra a Mediapart” http://goo.gl/cEbNig)
- Se a comunidade
de praticantes e os organizadores do Colóquio defendessem uma culpabilização
dos pais, é pouco provável que cinco associações de pais de crianças autistas,
bem informados, portanto, dos conflitos atuais, fizessem intervenções no
Colóquio para relatar as experiências bem sucedidas com a Terapia da Afinidade
e para defender uma abordagem pluralista do autismo, não excluindo aí os modelos psicodinâmicos.
- As poucas
referências à “mãe crocodilo” feitas por Lacan,
não dizem respeito, em absoluto, ao autismo. As teses de Bettelheim relativas à
implicação dos pais na etiologia do autismo nunca foram unânimes entre os
psicanalistas: a partir de 1965, Tustin se opôs fortemente a elas, e não parou
mais de fazê-lo. Sua influência sobre a abordagem psicanalítica não era menor do que a de Bettelheim.
- Consideramos o
autismo como um funcionamento subjetivo específico, e não como uma psicose.
Jean-Claude Maleval explica o porquê em seus trabalhos.
- A prática
psicanalítica não utiliza a terapia convulsiva (às
vezes prescrita na psiquiatria), e não defende os eletrochoques. Por outro
lado, a Srª. Vinca Rivière, defensora do método ABA, exalta as virtudes deles.
(Dufau S., “Autismo: uma crônica embaraçosa para um
centro sempre citado”, Mediapart, 3 de abril de
2012, www. mediapart.fr).
- A psicanálise não
deve ser confundida com a psiquiatria. Há meio século, a psicanálise era a
dominante na psiquiatria francesa; hoje, as neurociências constituem a referência privilegiada. A psicanálise se presta
ao diálogo com o paciente; as neurociências examinam seu sistema nervoso.
Observadores independentes sustentam que a perda de referência da psicanálise
pela psiquiatria contribuiu muito para a sua desumanização. (Cf. Coupechoux P., Um mundo de loucos. Como nossa
sociedade maltrata seus doentes mentais, Paris, Seuil, 2006)
- “A” Psicanálise não
existe. Ela é atravessada por várias correntes, e, em relação ao autismo,
sustenta, às vezes, teses contraditórias. Isto também é verdade em relação a várias
terapias comportamentais e cognitivo-comportamentais (elas não defendem o
choque elétrico). Isso ainda é verdade em relação às recomendações da Alta Autoridade da Saúde cujas recomendações científicas entram, às vezes, em conflito
com suas próprias recomendações éticas. Ela incentiva a se levar em conta “os
gostos, os ritmos, as capacidades”, e, mesmo, “os desejos” próprios da criança autista! No entanto, ela não
desaconselha o método ABA!
- A HAS
[Autoridade Superior de Saúde], em 2012, recomendou para que a ABA, a TEACCH e
Denver cuidassem das crianças
autistas, não
em nome de uma ciência triunfante, mas por falta de melhores. Ela constata, na
verdade, no mesmo documento, que nenhum desses métodos tem validade científica
(elas não têm mais do que uma “presunção de eficácia”; por vezes, uma “evidência fraca”). A HAS considera que todos esses métodos têm mais
fracassos do que sucessos. Isto deveria incentivar certa moderação nas
recomendações.
- A HAS não
rejeitou o tratamento de crianças autistas pela psicanálise ou pela
psicoterapia institucional: ela não tomou partido. Há uma grande diferença
entre a qualificação “não consensual”, que lhe foi atribuída, e a “não recomendação”.
- A qualificação
“não consensual” relativa à psicanálise e à
psicoterapia institucional se justifica pela ausência de estudos baseados na
metodologia da HAS (que rejeita o que é recomendado como mais operatório pelos
psicanalistas que é o estudo longitudinal de caso). Ora, um estudo recente do
INSERM (2014), favorável aos tratamentos psicodinâmicos, acaba de preencher
essa lacuna: Thurin J.-M., Thurin M., Cohen D. & al. “Abordagens
psicoterapêuticas do autismo: resultados preliminares a partir de 50
estudos intensivos de caso”. Neuropsychiatrie de l’enfance et de l’adolescence 62, 2014, p. 102-118.
- Deve-se observar
que as divergências, ao contrário do que vem ocorrendo, devem ser expressas
através de argumentos racionais, e não pelas calúnias habituais, que, de
imediato, com poucas palavras, procuram impedir a troca de ideias.
1 Suskind R., Vida, animação: A história
de Unidos para vencer, Herois e Autismo [Life, Animated : A story of
Sidekicks, Heroes and Autism], Kingswell, California, 2014.
Tradução: Luis Flávio
S. Couto
Nenhum comentário:
Postar um comentário