segunda-feira, 6 de março de 2017

AUTISMO E PSICOSE

CONTINUAÇÃO DO DIÁLOGO COM ROSINE E ROBERT LEFORT[1] 

Eric Laurent[2]

O autismo, ao longo dos últimos quinze anos, não parou de afirmar a sua presença a ponto de substituir as “psicoses infantis” no campo dos “distúrbios invasivos” da infância. A síndrome clínica, isolada praticamente ao mesmo tempo por Leo Kanner em 1943 – judeu gaulês como Freud, formado em Berlim, emigrado nos anos vinte para a América -, e Hans Asperger, em 1944, vienense; ficou, por muito tempo como um diagnóstico raro. “De início, fez par com a esquizofrenia infantil. Os dois conceitos se separaram em 1979. O Journal of Autism and Childhood schizophrenia, fundado em 1971, se tornou o Journal of Autism and Developmental Disorders”[3]. Desde o final dos anos sessenta, aproximadamente, os pais ingleses “estimulam o diagnóstico de autismo, pois esta era a única forma de déficit de aprendizagem que não era classificada enquanto impossível de educar na Grã Bretanha”[4]. Graças a este estatuto de deficiência, distinto do de doença, foi permitido aos pais reivindicarem direitos e instituições de educação especializada. Nos Estados Unidos, a irmã de John Kennedy, portadora de retardo mental, favoreceu a sensibilização dos poderes públicos aos seus direitos. Na França, por estas mesmas razões, os adeptos à psiquiatria social argumentam pelo abandono do termo “psicose infantil”[5]. Uma vez estabelecido como diagnóstico de escolha em detrimento da psicose infantil[6], torna-se uma epidemia. “Somente na Califórnia, triplicou o número de crianças que receberam benefícios especiais em virtude de seu autismo, entre 1987 e 1998, e dobrou nos quatro anos seguintes. Esta onda enfatizou a urgência das demandas por mais pesquisas sobre o autismo e mais financiamentos estatais a estas”[7]. As dificuldades em isolar os “fortes componentes” poligenéticos do distúrbio, ou em precisar o papel das vacinas na difusão da epidemia, não depuseram os adeptos do modelo estritamente científico. A ineficácia dos medicamentos sobre o distúrbio e especialmente dos neurolépticos, tornam-se mais necessários os anúncios de progressos decisivos de pesquisas de causas mecânicas a fim de abrandar a angústia de pais e mesmo dos entornos dos próprios sujeitos autistas. Michel Grollier[8] destaca que a “Circular de 08 de março de 2005 relativa à política de apoio a pessoas portadoras de autismo e de distúrbios invasivos do desenvolvimento (TED) é menos prudente que os especialistas em neurociências sobre as causas da deficiência autística”. Ela afirma, de fato, que “As causas advêm provavelmente, de processos complexos nos quais se evidencia a intervenção de múltiplos fatores genéticos e onde podem estar implicados vários fatores ambientais. As teses baseadas exclusivamente na psicogênese do autismo, que tiveram o mérito de atentarem para pessoas autistas embora tenham acentuado gravemente a aflição dos pais, estão, e devem estar, atualmente afastadas”. A prioridade agora é educar, acompanhar a inserção e “limitar consideravelmente as consequências para as pessoas e seus próximos”. Nesta perspectiva, renunciaram o esforço de Lacan ao nos propor, em 1975 a propósito do autismo: “Há, certamente, algo a lhes dizer”[9]. Os pais hoje ficam no face-a-face com a deficiência de seu filho. Eles são convidados a fazerem de seu filho a “causa” de suas vidas e a lutarem pelos seus direitos. O terceiro, diante do qual é preciso reivindicar mais direitos e apoios, é mantido absolutamente exterior. Nestes tempos de penúria, esta situação não é facilmente suportável. Marcel Hérauld, presidente da principal associação de famílias, “Sesame autisme”, observa: “A situação é mais dramática há alguns anos, pois as ferramentas da psiquiatria pediátrica vêm diminuindo, uma vez que vêm sendo estabelecidas cada vez mais patologias. Há dez anos, a maior parte das crianças autistas era atendida em tempo integral; atualmente, o atendimento é, no melhor dos casos, parcial”[10]. É notório que instituições abertas às crianças autistas na Bélgica se encarregam parcialmente – aproximadamente três mil franceses são acompanhados aí. Nossos colegas belgas sabem bem disto, pois acolhem uma parte, seja na “Antenne 110”, seja no “Courtil”, em suas diferentes extensões[11]

Nos Estados Unidos e na Inglaterra, os adeptos das terapias comportamentais e educativas propõem mobilizar os pais e as crianças num esforço intensivo constante, sem relaxamento, sendo necessário investimentos máximos de cada um, financeiro e relacional, em todos os momentos do dia. Esta tensão, embora deleguem parcialmente aos “profissionais”, educadores comportamentais, leva os pais à exaustão. Esta dissimetria da relação das mães e pais no tocante à criança com deficiência não parece fácil se consideramos os dramas recentes. “No dia 12 de abril de 2006, em Hull, Inglaterra, Alison Davies e seu filho de 12 anos, Ryan, se mataram jogando-se da ponte sobre o Rio Humber, numa aparente morte/suicídio. No dia 14 de maio, em Albany, no Oregon, Christophe de Groot, de 19 anos, foi retirado de dentro de seu apartamento em chamas. Ele morreu num hospital em Portland cinco dias depois e seus pais foram acusados de tê-lo matado, de tê-lo deixado trancado sozinho. Neste mesmo domingo de maio, em Morton, Illinois, a Dra. Karen Mc Carron reconheceu, perante a polícia, que havia, na véspera, sufocado sua filha, Katherine, de três anos, com um saco plástico”[12]. Estes casos foram escolhidos pela autora, ela mesma mãe de uma criança autista, pois as duas mães citadas foram socorridas pela vizinhança que considerava heróico o amor delas pelos filhos doentes. Elas foram escolhidas como uma forma de diminuir as esperanças dos pais que podem levar a extremos como estes. Podemos dizer que, nestes casos, a criança verdadeiramente realiza o objeto fantasmático. “Ela aliena em si, qualquer acesso possível da mãe à sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência e até a exigência de ser protegida”[13]. O aprisionamento na identidade “mãe de criança autista” não é somente uma oportunidade de empoderamento, é também, como anunciou Jacques-Alan Miller, um fechamento deletério que Lacan nos mostrou em sua “Nota sobre a criança”. Nas sociedades onde reina o individualismo democrático, este é um fechamento que prolonga as modalidades e as disciplinas de aprisionamento descritas por Foucault no século XIX.

Contrariamente ao que diz a Circular de 2005, a psicanálise não “culpabilizou os pais”. Não se precisa da psicanálise para isto. Esta visa, sobretudo, desculpabilizar os sujeitos. O aforismo de Freud segundo o qual os pais, o que quer que façam, farão mal, vai neste sentido. Insistir que o tratamento do autismo pela psicanálise seja um erro em nome de supostos determinantes genéticos, é um equívoco. Um sujeito não deixa de ser um sujeito mesmo se seu corpo é “deficiente”. Convém adaptar a psicanálise a seu caso. De qualquer forma, isto não consiste apenas em querer afirmar a soberania da psicogênese sobre a somatogênese. O parto ou a gravidez difícil, uma doença genética ou um traumatismo somático, produzem uma alienação do sujeito, compromete todo o domínio possível de seu corpo que pode provocar um “laisser-en-plan”, uma impossibilidade de um apelo ao Outro que conduz à forclusão. Trata-se de fazer destes dados, e aqui também diz respeito a dados biológicos eventuais, um instrumento de aplicação da psicanálise ao caso, em vez de considerar que isto poderia não ter qualquer consequência para a constituição mesma do sujeito. Como observa Lacan, a psicanálise não supõe, neste sentido, uma psicogênese das doenças mentais. Ela afirma a dimensão do corpo para o sujeito, do parasita linguageiro – o que é outra coisa. 

Constatamos que instituições de tratamento, orientadas pela psicanálise, especialmente pela psicanálise lacaniana, acolhem crianças autistas na Europa[14]. Prestam contas de seu trabalho teórica e administrativamente. São inúmeros os pais, especialmente mães, de crianças autistas, que puderam se apoiar numa psicanálise para não serem deixados sozinhos no exaustivo combate pelos direitos que têm. Estes pais não estão “acompanhados” enquanto pais, mas suas análises lhes conferem um lugar onde podem elaborar sobre suas próprias verdades, mais além do mal-estar que lhes acomete. Há outras formas de desculpabilizar que não o universal da ciência. É possível reconhecer a particularidade de um sofrimento sem fazer disto uma identificação comunitária ou a anulação pela referência a uma causa “natural”, que não diga respeito ao ser falante.

É o lugar da psicanálise na epidemia contemporânea de autismo em todos os seus aspectos pertinentes aos diálogos mantidos através das pesquisas de Robert e Rosine Lefort. Robert Lefort, psiquiatra infantil e psicanalista apaixonado, sempre quis aplicar os aprendizados com as crianças psicóticas a um quadro institucional adaptado a esta clínica. Para ele, a criança, sobretudo a criança psicótica, não deve ser abordada somente a partir do imaginário, como fazem as técnicas de jogos muito especialmente difundidas. É preciso abordá-las pelo particular enodamento do simbólico e do real. O final dos anos sessenta foi propício às experiências institucionais. Em setembro de 1969, ele criou, juntamente com Maud Mannoni, a “Escola experimental de Bonneuil-Sur-Marne” como uma “instituição aberta”, onde desenvolveu o que ele aprendeu do trabalho clínico que Rosine lhe apresentou desde os anos cinquenta.

Autismo e/ou psicose infantil: a forclusão e o retorno do gozo

Não havia uma epidemia quando Rosine e Robert Lefort começaram a concentrar seus interesses sobre o que lhes parecia uma posição subjetiva dentro do quadro das psicoses infantis. 

O desenvolvimento de sua obra produziu efeitos esclarecedores renovados sem cessar, a respeito do “instante de ver” decisivo que foi a abordagem, por Rosine Lefort, do caso “Robert”, orientado por Lacan. Em 1954, o reconhecimento de uma palavra quase alucinante gritada por uma criança: “o lobo, o lobo!” como que escapando às leis do simbólico, ficava difícil de situar. Lacan qualificou de “Supereu” este “caroço” da palavra. Esta palavra não indica, não mais que designa como tal um sujeito falante. “Não é nem ele, nem algum outro. Ele é, evidentemente, O Lobo! na medida em que diz esta palavra. Mas, O Lobo! é qualquer coisa enquanto pode ser nomeada. Vocês vêm aí o estado nodal da palavra. O eu é aqui, completamente caótico, a palavra interrompida. Mas é, a partir de O Lobo!, que ela poderá encontrar os eu lugar e se construir”[15]. Esta palavra não se articula numa relação de troca. É a primeira versão do que virá a ser um S1, o significante solto. Seu uso será a linha mestra que atravessará os trabalhos de Rosine e Robert Lefort.

Que o Menino Lobo esteja no real não impede uma ação no simbólico. Rosine dirá a seu respeito: “Ele é o significante ‘Madame’. Ele é ‘Madame’ na forma como se comporta diante de mim, assim como se passa pela polícia com as outras crianças ou como lhes oferece biscoito sem guardar para si”[16]. É fazendo uso ao avesso desta dimensão de passagem do simbólico no real que o sujeito é conduzido a um “batismo”, a se nomear através de seu grito.

Uma vez que esta nomeação é produzida, seguem-se alguns efeitos. Há a constituição de uma cadeia metonímica de objetos que lhe permitem sair de sua angústia fascinada pelo buraco do banheiro. O Menino “amplia seu mundo”. A possibilidade e a lógica da constituição desta cadeia metonímica não deixarão de ser exploradas sob todos os aspectos, por Rosine e Robert Lefort.

Nós fizemos parte de uma geração que acompanhava o seu deciframento e de seu posicionamento a respeito do que poderia ser uma psicanálise de crianças abstendo-se dos sortilégios do imaginário. Tratava-se de corrigir o sentido da própria clínica. Lacan situou este viés: “Função do imaginário, digamos, ou mais diretamente, das fantasias na técnica da experiência e na constituição do objeto nas diferentes etapas do desenvolvimento psíquico. O impulso proveio, aqui, da psicanálise de crianças, e do terreno favorável oferecido às tentativas e às tentações dos investigadores pela abordagem das estruturações pré-verbais”[17].

A ênfase colocada sobre o lugar e a função do real para o sujeito psicótico nos distanciou das aderências kleinianas na psicanálise de crianças graças ao objeto a sem representação, assim como da função das imagens do corpo conforme Françoise Dolto estabelecia. Esta orientação permite, enfim, observar as bases do movimento clínico pós-kleiniano (Meltzer, Tustin) em direção à clínica do autismo.

Era preciso declinar do prestígio idolatrado do corpo e suas imagens privilegiando uma verdadeira ascese à “orientação pelo real”. “Seria uma grande contradição manter a psicanálise de crianças reduzida a uma técnica de jogos e de desenhos enquanto a criança se mostra capaz, mesmo quando muito pequena – mesmo antes de falar – de nos esclarecer sobre pontos essenciais da constituição do sujeito no discurso analítico... Era preciso recolocar a psicanálise de crianças neste nível básico, lá, onde o corpo aparece de forma privilegiada como um corpo de significante. Significante, certamente, mas onde o real se localiza a partir do objeto a e, se há um momento privilegiado em que o sujeito aparece como um efeito de real, é numa criança” [18].

À medida que, no ensino de Lacan, os “paradigmas do gozo” são deslocados, o gozo, em sua dimensão real, é desnudado. As consequências da variação do uso do “significante solto” não cessaram de nos orientar quanto à exploração da clínica que Rosine e Robert Lefort nos abriram. 

De O Nascimento do Outro (1980) à Distinção do Autismo (2003), Robert Lefort desenvolveu, juntamente com Rosine, uma obra centrada nos tratamentos de sujeitos para os quais “não há Outro”. Nós acompanhamos o avanço de seu comentário sobre Marie-Françoise, quem lhe ensinou sobre o que se produz com este significante solto “quando não há Outro”. 

Das “estruturas da psicose” à “estrutura autística” (2003)

Eles colocaram este “não há Outro” em tensão com a “inexistência do Outro” na civilização. Nesta perspectiva, postularam “uma estrutura autística” que, sem se apresentar como um enquadramento do autismo propriamente dito, o evoca por seus elementos estruturais dominantes e claramente observáveis. Esta estrutura viria como numa quarta posição em relação às grandes estruturas: neurose, psicose, perversão e autismo[19]. Em La distinction de l’autisme, os gênios e os artistas adultos puderam testemunhar conjuntamente de suas posições subjetivas singulares. Eles nos aparecem como irmãos autistas do gênero humano. 

Especialmente a partir de 1992, Rosine e Robert Lefort se posicionaram por uma separação do autismo do quadro geral das psicoses. Isto se fez necessário por uma modalidade particular de forclusão que provoca a rejeição de todos os significantes ou por uma forma particular de retorno do gozo sobre o corpo? Falaremos disto mais adiante. 

Uma das indicações que nos foi dada pelo Dr. Lacan é que, na posição autística, no sentido amplo do termo – como o autismo do caso Dick de Melanie Klein, ou o caso Sami Ali, apresentado nas “Jornadas sobre a infância alienada”, ou o caso do Menino Lobo, de Rosine Lefort -, a criança autista é alucinada. Dizer que há alucinação é dizer que há um mergulho do simbólico no real. “... esta criança só vive no real. Se a palavra alucinação significa alguma coisa, é este sentimento de realidade”[20].

Partindo disto, como qualificar esta modalidade forclusiva? Se há Outro, ele funciona como pura exterioridade de todos os significantes. Neste sentido, o autismo seria uma modalidade radical da forclusão psicótica. A ausência de toda “prótese imaginária” possível é, neste caso, um dos aspectos particularmente impressionante. Não tem delírio, o que se suporia um misto de imaginário e simbólico.

A redução do estatuto do Outro, a proteção e a distância colocadas pelo sujeito podem levar a um estado de redobramento que provém de um processo de estabilização catastrófica cuja exploração deve ser feita nas três dimensões do real, do imaginário e do simbólico. Em 1958, Lacan pôde falar de estabilização da metáfora delirante em Schreber, e da “prótese imaginária” que protegia Schreber até o desencadeamento tardio de sua psicose. A exploração deste processo se deu até os anos setenta, após o Seminário sobre Joyce, como “sinthomizações” nestas estruturas psicóticas para dar conta dos mecanismos de costura.

Fora este estase catastrófico, não poderíamos ressaltar a alternância de estabilizações e de passagens em direção à psicose? Robert Lefort, naqueles anos, anunciou o aforismo segundo o qual: “a criança autista sai do autismo para entrar na psicose”. A estabilização pode, então, se deslocar num certo número de casos, sempre centrada em torno do mecanismo essencial da localização de gozo.

Que se fale de saída pela psicose ou de deslocamento no interior do autismo, a criança sai de uma estabilização para deslizar numa metonímia. É uma desestabilização do estado homeostático no qual é uma carapaça autística, resultado de uma estabilização. Seu corpo pode, assim, se animar, não sem um fenômeno de excitação maníaca, num esforço para se recolar ao que, para o sujeito, se apresenta como um objeto suplementar aparentemente concebido como qualquer outra concepção delirante[21], produção fora corpo de articulações significantes reais com as quais o sujeito se aparelha. Para situar este aparelhamento, podemos nos apoiar nos quatro matemas que nos oferece Lacan como bússola de orientação: S1,S2,$,a.

S1 de início, o significante mestre

A passagem do significante no real e sua repetição sem deslocamento definem o que chamamos na descrição clínica de “gosto pela ordem” manifestada pelo sujeito autista. Que seja a repetição de um significante isolado ou de um circuito mínimista que não se organiza como pares de oposições significantes, mas como justaposições reais. O S1 nos apresenta a clínica do circuito, dos circuitos desdobrados, que isto se coloque no interior do quarto, de uma instituição, da cidade. Lacan poderia dizer que o delírio é delírio “da estrada, da rua, da praça” que o mundo esteja exatamente no lugar, que não haja o menor deslizamento metonímico. Assim que algo se mexe, a crise se produz. Quando qualquer coisa do mundo não está no seu devido lugar, a ordem do mundo é imediatamente tocada. O mundo vem a se confundir com a ordem do mundo. 

O simbólico, assim como o real, é munido de uma topologia. Não podemos simplesmente planificá-lo. Ele é, em alguns momentos, achatado. Mas há, em outros, fenômenos dos quais nós somente podemos nos dar conta com a ajuda de uma topologia de espaço pulsional. Em Nascimento do Outro, Rosine e Robert Lefort ressaltaram várias destas propriedades. Consideremos, por exemplo, os momentos em que a criança vai, num movimento de vai-e-vem excitado, se colar no olho do terapeuta, depois, na janela do consultório, como se houvesse certa equivalência entre os buracos, aquele que abre sobre o corpo e aquele que abre para o exterior. Para estabelecer esta equivalência, somos levados a supor um espaço que não é construído com um fora e um dentro, limitado pelas bordas da casa, mas, sobretudo, um espaço estruturado como um toro onde o ponto de vista da superfície – o interior do círculo do toro ou o exterior –, é sempre o exterior. Podemos olhar para o interior e estaremos sempre olhando o infinito.

Este tipo de espaço não métrico pode nos ajudar a nos darmos conta das más percepções visuais da criança autista, por exemplo, do fato clínico de, ao escutar um avião no infinito, passando no céu, ele vivencie um terror equivalente a um barulho perto de si. Do que se trata, da percepção visual ou da auditiva? Trata-se, sobretudo, de um espaço onde o sujeito se cola à pulsão de forma não métrica. Temos afinidade com estes sujeitos que se deslocam nestes espaços de gozo onde o infinito e o próximo estão ao lado, é a mesma coisa. O buraco que está aberto ao lado destes é também um ponto no infinito. O espaço métrico somente se estabelece mais tarde com o padrão métrico, isto é, o falo. Uma vez que a significação fálica não está presente, não se mede o mundo. François Truffaut diz que a medida do mundo lhe era conferida pelas pernas das mulheres. Sem esta medida, o Outro pode sempre invadir o corpo do sujeito com um gozo atroz, catastroficamente, sem que as bordas possam regrar uma pulsação.

A topologia deste espaço real nos foi apresentada pelo Doutor Lacan num certo número de superfícies unilaterais a partir de seus estudos dos anos cinquenta sobre a psicose. Podemos, aqui, nos reportar ao esquema R em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” e à apresentação da topologia de Lacan feita por Jacques-Alan Miller em seu “Suplemento topológico à questão preliminar...”[22].

S2, o saber

Nós vemos, nestas crianças, uma oposição direta, radical, de pura exterioridade quanto à relação com o saber inserido na linguagem. Esta forma de relação persecutória para com o saber é uma relação perfeitamente constituída. O sujeito autístico tenta reduzir a desordem de lalangue a uma linguagem da qual se possam extrair regras fixas. Em um recente artigo, Jean-Claude Maleval apresentou uma série de declarações de alguns “autistas de alto nível” como Temple Grandin, Donna Williams, sobre como o desacoplamento entre o corpo, o simbólico e o sintoma é particularmente surpreendente. “Minhas decisões, ele afirma, não são comandadas por minhas emoções, elas nascem do cálculo”. Lacan chamava a atenção para o mesmo fenômeno com Dick, observando: “ele já tinha certa apreensão dos vocábulos, mas, destes vocábulos, ele não havia feito a Bejahung – ele não os assume”. A dificuldade de exprimir seu sentimento incita Temple Grandin a comparar sua maneira de pensar à de um computador: “Recentemente, assisti, ela relata em 1995, a uma conferência onde uma socióloga afirmava que os seres humanos não falam como os computadores. Nesta mesma noite, na hora do jantar, eu contei a esta socióloga e aos seus amigos que a minha forma de pensar parecia com o funcionamento de um computador e que eu poderia lhes explicar o processo, passo a passo”[23]

As regras da linguagem apresentadas desta maneira são disjuntas de qualquer relação com o corpo e com o imaginário cortado de todo afeto. Antes de 1983, acreditávamos inicialmente, num tipo de apresentação das regras do órgão da linguagem segundo Noam Chomsky. É o exercício do rigor psicótico, mas sem a contaminação imaginária da construção delirante. O jogo do simbólico é “realizado” sem equívocos possíveis. Para isto, podemos nos basear nas próprias declarações dos autistas. Uma das particularidades deste diagnóstico é o interesse que este suscita em nossa civilização. Os autistas são solicitados a testemunharem, a transmitirem a originalidade de suas experiências. As mídias repercutem largamente estas declarações e as autobiografias são generosamente editadas. O interesse que o século XX havia demonstrado em relação aos delírios foi deslocado em direção às proezas técnicas realizadas pelos “autistas sábios”. Finalmente, a patologia que parece a mais apartada da comunicação, dá lugar a uma comunicação estranha e multiforme. Podemos agora ler a pesquisa de Kamran Nazeer[24] sobre quatro de seus colegas de escola especial para autistas, que a frequentaram em 1982. Ele passou desta escola a Cambridge, na Inglaterra e atualmente trabalha no Ministério de Assuntos Estrangeiros, o mais procurado da administração pública inglesa. Ele oferece uma perspectiva autista sobre casos de autistas. Um de seus antigos colegas trabalha como analista de discurso político em Washington, outro é engenheiro de sistemas informáticos, outro é encarregado das compras, com percursos bem eruditos. No entanto, nem tudo são flores. Uma amiga, pianista superdotada, cometeu suicídio no auge de um episódio de depressão. Nesta pesquisa, vemos como os sujeitos autistas encontram soluções perfeitamente autísticas que lhes permitem se inserirem no Outro. O autista de alto nível reconhece seu funcionamento próprio e o de outros sem nenhum obstáculo imaginário. O fato de não ter qualquer empatia não é apenas uma “deficiência”. Isto o liberta de toda “compreensão”. Temos um exemplo particularmente claro com Daniel Tammet, um autista que se tornou célebre em 2004 por haver declamado o número até o 22.514 decimal e haver quebrado a banca de blackjack em Las Vegas. Em Nascido num dia azul, Daniel Tammet conta a sua infância, quando os números eram seus únicos amigos. Seu estilo é tão elegante que a estranheza da obra só transparece lentamente: não há diálogos, nem humor e nenhuma auto-referência engraçada. Ele narra sem floreios, movido pelo desejo ardente de se explicar. Ele chega a se embolar nos detalhes quando aborda suas paixões, tal a estrutura de linguagem. É capaz de dominar, com uma facilidade incrível, temas problemáticos para a maioria das pessoas, as matemáticas e as sintaxes (ele deu um seminário de uma semana na Irlanda). Por outro lado, ele devia lutar para adquirir competências que pareceriam evidentes a qualquer um: a comunicação, a empatia, a capacidade de visualizar um conjunto sem se perder nos detalhes. “Meu cérebro decompõe tudo em elementos concretos e tangíveis, ele explica. É o intangível que eu compreendo mal”[25].

$, o sujeito

Vamos defini-lo de forma mais simples, como o fez Lacan, como aquele do qual se fala. Veremos, muitas vezes entre os autistas, que eles são identificados, presos a um dito parental, mais comumente a uma designação educativa. 

Assim, o sujeito se extrai deste primeiro estatuto, desta primeira posição, assim que se separa do Outro; e também nos momentos de produção de um saber sobre a linguagem em seu conjunto e sobre as regras do discurso como laço social, ou em momentos de estupor, de pura ausência real. Nestes dois casos, ou sobre estas duas vertentes, nós podemos falar de produção de sujeito, quer se trate da vertente da alienação como a pura exterioridade do discurso ou do estupor.

Tal sujeito pode falar de um “momento de esvaziamento”. É uma pura ausência real que pode ser o surgimento de uma função sujeito no interior de uma hiperagitação ou de urros, ou no interior deste empoderamento pelos significantes mestres do dito parental “realizados”. 

O objeto a

Podemos descrever diversas modalidades de acoplamento do sujeito autista com um objeto particularizado, suplementar, eroticamente escolhido. Este é um objeto de gozo fora do corpo, substituto da categoria de objeto a. O corpo do sujeito está numa relação de re-colagem incessante com este objeto, de tentativa de se situar em relação a este. Da mesma forma, se recolar, e se rejeitar. Este objeto é essencial, seja uma bola, uma caixa, um copo, um computador. É inseparável do sujeito. É aí que podemos discutir o que Bruno Bettelheim havia anunciado como “a criança-máquina”. Renunciemos à criança-máquina. É bem mais de uma criança-órgão que é preciso falar, pois, ao contrário do que Bettelheim acredita, a criança autista nos demonstra que a relação não é com um objeto desumanizado. Não é a máquina, é uma exteriorização do Outro como exterioridade, como órgão sem função. Temos ali uma perfeita ilustração. As diferentes construções produzidas pelas crianças autistas nos indicam a função de um órgão suplementar do qual a criança tenta, ao preço de sua vida, se precisar, extrair ou introduzir este órgão suplementário que corresponderia à linguagem em seu corpo.

São, especialmente, objetos que, em nossa civilização, fazem borda ao corpo, tais como sapatos, luvas, ou que o cobrem como avental, roupa, usados como proteção. Estes objetos são, de fato, as peles que se tira de seu corpo, armaduras que podem se tornar complexas, mas que têm a mesma estrutura: do sapato ao órgão destacável do herói-robô em voga no console dos jogos do momento.

Atentos às dificuldades que os sujeitos podem experimentar em relação a seus corpos quando do destacamento de pele, é preciso considerar uma outra ordem como possibilidade de báscula obtida no momento em que a criança isola um objeto em sua singularidade. Temos um exemplo deste tipo de momento de isolamento, de elevação de um objeto na sequência do que Rosine e Robert Lefort – num texto publicado em Ornicar? – a saber, a mamadeira em “O Menino Lobo” e a consequência que isto tem[26]

O objeto fora corpo integra, pouco a pouco, um contorno que envolve, que protege o corpo do sujeito. Este objeto, de início fora corpo, virá a ser preso, a ser encerrado no interior de uma montagem do corpo somado ao objeto fora corpo. É, neste sentido, que o esforço do sujeito autista se inscreve na família dos esforços para subjetivar “que um animal d’estabitat [stabitat] que é a linguagem por abitalo [labiter] que é o que para seu corpo cria um órgão [...] É justamente por isto que ele é levado a descobrir que seu corpo não é sem outros órgãos, e que a função de cada um deles lhe cria problemas... ”[27]. No mesmo artigo, Lacan fala do “dito esquizofrênico” que não tem garantia “de nenhum discurso estabelecido”, não poderíamos situar aí “o escrito autístico”? A função do órgão-computador, encarnando, pelo menos, não testemunharia a desconexão do simbólico com a palavra e a voz?

Jean-Claude Maleval organiza, de forma decisiva, a clínica do autismo a partir do lugar do objeto voz[28]. Ele confere ao objeto voz o valor de portar o traço da singularidade que o autista não suporta. Este testemunha a recusa da interlocução que lhe é endereçada ou que ele deveria endereçar ao Outro. A marca do gozo não foi extraída da palavra ao ponto deste sujeito viver a emissão como uma verdadeira mutilação. Falar é “esvaziar-se”ou “esvaziar seu cérebro”. É por que: “A dissociação entre a voz e a linguagem está no princípio do autismo” [29]. Não nos esqueçamos de que o uso da linguagem supõe o consentimento da existência de um lugar no Outro, “esvaziado do gozo”. É isto que faz a sua “falta de garantia”. O sujeito autista não pode escapar deste traumatismo do endereçamento. Ele é extremamente aterrorizado por consentir o “incorporar da voz como a alteridade do que é dito” [30]. Não há o que incorporar do órgão da voz. A crença nas mentiras dos desvios da “comunicação” não é suportável por este sujeito. Assim, falar é “se gozar” através dos desvios daquele ao qual se endereça. Falar é pura mutilação para este sujeito.

Neste sentido a relação do autista com seu corpo nos apresenta um corpo esvaziado de qualquer órgão de troca possível. O corpo-autista seria o verdadeiro “corpo sem órgão”. O despedaçamento do corpo por seus órgãos é suplantado ao preço de um fechamento em uma “carapaça”, como alguns assim o chamam. O sujeito “se goza” sem o trajeto da pulsão que poderia articular o corpo do sujeito ao Outro. Esta distinção está presente na esquizofrenia onde o retorno do gozo se faz no corpo do sujeito. Está presente também, na paranoia, onde o gozo mal é “do Outro”. Está abolida no autismo pela inexistência do trajeto pulsional. Ou ainda, podemos dizer que o “corpo-carapaça” é o que advém de um corpo onde todos os orifícios são embuchados pela “lamela”. Não há qualquer trajeto possível. A vontade de castração real do Menino-lobo na primeira fase de seu tratamento assinala a radicalidade da recusa de um órgão cuja função é puro enigma para o sujeito: “o psicótico, não podendo cortar o objeto oral no Outro, deve se cortar o pênis. É a equivalência essencial da parceria seio-pênis, como nos vai mostrar Robert durante meses – tendo como prolongamento, mostrar seu pipi cada sessão – e que testemunha o inelutável do corte fatal, ali, real[31].

A aplicação da psicanálise ao autismo: o autismo a dois

Em que consiste, então, a aplicação da psicanálise ao autismo? Trata-se de permitir ao sujeito se desobstruir de seu estado de preenchimento homeostático sobre o corpo encapsulado e de passar a um modo de “subjetividade” da ordem do autismo a dois. Trata-se de se fazer um novo parceiro deste sujeito, fora qualquer reciprocidade imaginária e sem a função da interlocução simbólica. Como obter isto sem que o sujeito seja atravessado por uma crise impossível de suportar? O suporte de um objeto fora de uma dimensão de jogo é necessário para fazer-se parceiro do autista. “Sem objeto não há Outro”[32]

Vejamos como procede Rosine Lefort: “Eu a levo à sessão, radiante. Eu me sento na cadeira baixa: Nadia verifica a minha posição em relação à sua de forma inquieta. Ela se tranquiliza e vai tirar os objetos do baú, um após o outro. Hoje os gestos são menos desajeitados, mais diretos e ela não tem gatilhos. Ela está interessada numa pequena xícara em torno da qual vai passar toda a sessão: após tê-la arremessado, ela a pega e a inspeciona. Eu lhe digo que é uma xícara para beber, como eu havia nomeado cada brinquedo que ela havia retirado do baú. Ela leva a xícara à sua boca, a suga, mas o seu olhar está sobre a mamadeira. Ela joga a xícara, tenta virar a mamadeira com a mão, não ousa fazê-lo e tenta conseguir com um pedaço de madeira que ela pegou no baú e que ela suga antes de aproximá-lo da mamadeira”[33]. Na sequência, pôde se instalar um vai-e-vem e trajetos do sujeito em torno do objeto do Outro, que levou o sujeito a soltar um objeto do corpo da analista, objeto que entra numa série de substituições, constituindo assim, um preâmbulo de metonímia que permitirá a instauração de uma metonímia, de um deslizamento de um objeto a outro, ao mesmo tempo que há uma colagem.

Virginio Baio apresentou o caso exemplar de uma criança acompanhada em Antenne 110 por doze anos: de seis a dezoito anos. Esta criança tinha a particularidade de haver construído uma coisa extremamente complexa, composta por uma cadeira e duas tigelas d’água, que ele deveria manter em equilíbrio constantemente, estando em posição fetal e apoiado sobre um pedaço de pano. Este mecanismo era muito complexo, uma vez que, sempre que se movimentava, a tigela d’água caía. Naquele momento, havia uma crise. Uma excitação se apoderava do corpo da criança. Ele se entregava a tentativas de automutilação a fim de produzir um furo em seu corpo. As interdições não eram suficientes para contê-lo. Era preciso prender seu corpo para conseguir pará-lo, o que permitia alguma pacificação. A construção podia, então, recomeçar: a tigela era cheia até a boca, para que o sujeito se apaziguasse. Assistíamos, em seguida, ao final, a construção de uma cadeia que evolui “de um objeto a outro em torno de um buraco”. O sujeito chegava a passar destas tigelas a uma taça que ele substituía em seguida, por outros instrumentos. Tínhamos uma série de substituições que partiam da máquina extremamente complexa de partida, para chegar a uma caneta que ele aceitava para escrever. Lacan ressalta o encaminhamento do “Menino-lobo” que passa de um primordial corpo-continente a um instrumento destacável. “Vemos a criança se conduzir com a função mais ou menos mítica do continente e, somente no fim, poder suportá-lo vazio, como notou a Sra. Lefort. Poder suportar a sua vacuidade é identificá-lo, enfim, a um objeto propriamente humano, quer dizer, um instrumento capaz de ser destacado de sua função”[34]

A criança de quem se ocupava Virginio Baio estabeleceu uma transferência que fazia com que, quando o analista engrossava a voz dizendo “não”, nos últimos anos, isto fazia a criança rir. Doze anos depois, a criança pôde sair da instituição. Ele pôde encontrar uma forma de consentir à palavra e à escritura como uma mutilação, agora, suportável. 

Alguém me falou, em supervisão, do caso de uma criança autista que havia se apresentado arranhando selvagemente, até fazer buraco, folhas em quantidade industrial. Em seguida, ele começou a querer, com um leve sorriso mecânico, sempre o mesmo, de início, levar o telefone do terapeuta, depois a arrancar sua caneta e, mais tarde, a roubar as suas chaves. O terapeuta suportou isto pacientemente, não permitindo que isto acontecesse realmente, e interpretando-a em sua vontade de fazer um buraco nas folhas e de fazer desaparecer os objetos. Após esta fase, o sujeito pôde começar a falar dizendo “mais quebrar!”.

O telefone está no lugar da voz. A criança tentou levar o telefone do Outro, o estoque de onde vem a voz, depois, ele tentou levar a sua caneta por onde sai sem fim a escrita pesadelar. Ele tentou, finalmente, roubar-lhe as chaves, os instrumentos que permitem abrir o mundo, assim como fechar-se e si. Uma vez feitas estas tentativas fundamentais, como tentativas de produzir o traço da falta no Outro, ele pôde dizer “mais quebrar”. Simultaneamente, ele pôde cingir de um traço um novo objeto escolhido entre os objetos do terapeuta. Em um primeiro momento, ele o cingiu com um traço que não fazia uma curva fechada. Isto lhe possibilitou, mais tarde, poder aí se encontrar com a escrita que circunda um vazio.

Nas ranhuras, as centenas de ranhuras, feitas, de início, sobre as folhas, ele não escrevia nada. Nenhuma libido deixava ali, um traço. Uma vez que o sujeito pegava uma caneta e massacrava a folha até fazer um furo, o fort-da não funcionava. O sujeito não tinha, portanto, a possibilidade de escrever de forma alguma, que sua mãe havia partido. Não havia “acomodação dos restos” da partida da mãe. Com o fort-da e o carretel, quando a mãe parte, a criança a traz de volta. Com este jogo, ele simboliza a ausência e a presença e se encontra munido de uma bobina a mais. Em seguida, a bobina se transformará num urso de pelúcia. O que é um urso de pelúcia? É uma bobina à qual a criança recorre quando deve enfrentar uma separação. É uma “reserva de libido”, diz Lacan. Com esta pequena reserva fora corpo, o Outro pode partir. Mesmo se “o Outro o entristece” com a sua partida, lhe resta o urso. Com esta reserva de libido, ele pode aparelhar a angústia à qual ele fora deixado de saída da Coisa, a mãe real enquanto um lugar que humaniza a criança. Ela é o centro do mundo da criança e, quando ela se vai, ela a deixa numa ausência, onde não há mais significante, ou traços. Ela parte com todos os significantes da criança. Dependendo de como for, a criança pode não mais ter nenhum para si – todos terão partido. Para poder falar, para poder escrever sem se esvaziar, é preciso alguns restem, em reserva, no carretel, no urso de pelúcia. Com isto, a criança tem uma chance de suportar a angústia da ausência do traço da presença da ausência.

Esta forma de escritura não é a impressão do Um. Ela aparelha a ausência que pôde, para a criança, revelar um vazio. Lacan pode dizer que esta escrita, aquela que se produz do gesto da criança que lança o carretel, ou do traço do calígrafo, que ele “aplaca a angústia da Acoisa (Achose)[35]. Se o sujeito é confrontado, sem recursos, com esta angústia, o vazio da Acoisa (Achose) não se aplaca. O gesto do sujeito é um gesto onde o desejo é “letra morta”. A letra então o reenvia a um real do qual ele é impossível de se desembaraçar. A criança se exaure tentando eliminar um excesso que o congestiona. Não há nada que lhe permita construir um trajeto em direção ao Outro, qualquer coisa à qual a criança possa se apegar no momento em que está desolada pela ausência na qual fora deixada.

Na dimensão do dito, que é o da escrita, o sujeito tenta se esvaziar de uma presença cuja ausência não pôde ser simbolizada. Tenta se desembaraçar através da ranhura incessante. É uma forma de chegar ao máximo da dimensão da escrita no simbólico, sem se endereçar ao Outro. É o equivalente do trajeto enlouquecido de seu corpo e das repetições desenfreadas que jamais conseguem estabilizá-lo. Esta hipercinesia fundamental do sujeito que pode ser considerado autista, se produz nesta confrontação com a escrita como “coisa” que embaraça. O lápis é um “continente mítico”que o sujeito quer esvaziar de início. 

Tomemos os sujeitos autistas que nos dizem que não falam, porque seus cérebros se “esvaziam”. O terror que toma conta assim que o sujeito escreve sem escrever é da mesma ordem que a mutilação na palavra, a mutilação siderada do Menino-lobo, que Rosine e Robert Lefort souberam tão bem nos transmitir sua particularidade.


Tradução: Bartyra Ribeiro de Castro

Revisão: Rachel Amin 

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[1] Texto original publicado em La Cause freudienne, número 66, com o título: Autisme et psychose: poursuite d’un dialogue avec Rosine e Robert Lefort . 
[2] Psicanalista, membro da École de la Cause freudienne, Delegado Geral da Associação Mundial de Psicanálise. 
[3] Hacking I, “What is Tom saying to Maurren? London Review of books”, 11 de maio de 2006. 
[4] Ibid. 
[5] Prieur C., “Le gouvernement face au défit de la prise en charge de l’autisme », Le Monde, quinta-feira, 25 de novembro de 2004. 
[6] Cf., Sauvagnat F., “L’autisme à la lettre: quels types de changement sont proposés aux sujets autistes aujourd’hui ? », Psychoanalytische Perspectieven, Gand, 2000, nº 39, p. 113-149. 
[7] Goode E., “US reports a surge in autism, Calls for more research as cause remains e mystery, International Herald Tribune”, 29 de janeiro de 2004. 
[8] Grollier M., “L’autisme au XXI° siècle ». Cliniques Méditerranéennes, Érès, 2007, nº 76, no prelo. 
[9] Lacan J., (1998 [1975]). “Conferência em Genebra sobre o sintoma”, In Opção Lacaniana – Revista Brasileira e Internacional de Psicanálise, (23). São Paulo, Ed, Eolia, p.12. 
[10] Declarações selecionadas por Cécile Prieur, Le Monde, artigo de 25 de novembro de 2004. 
[11] D Ciaccia A., “La pratique à plusieurs », La Cause freudienne, nº 61, Paris, 2005, p.107-118 ; Stevens A., « Le Courtil : un choix », Mental nº 1, 1996 ; « Entrer en Institution, VIIª Jornada RI3: conclusão », Feuillets psychanalytiques du Courtil, nº 25/26, julho de 2006. 
[12] Mc Govern C., “Autism’s parent trap”, New York Times, 5 de junho de 2006. 
[13] Lacan J., “Nota sobre a criança”, Outros Escritos, Zahar Ed. Brasil, 2003, p.370. 
[14] Na Itália, é preciso ressaltar o trabalho de Martin Egge em Antenne 110. Egge M., “La cura del bambino autistico”, Casa Editrice Astromabio, 2006. Volume organizado por Dominico Cosenza. 
[15] Lacan J., O Seminário, Livro I, Os escritos técnicos de Freud, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1979, p.125. 
[16] Lefort R., “Le S1, le sujet et la psychose”, Analytica, nº47, 1986, p.51. 
[17] Lacan J., “Função e Campo da Palavra e da Linguagem”, Escritos, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p.243. 
[18] Lefort R. e R., Le CEREDA: Centre d’étude et de recherche sur l’enfant dans le discours psychanalytique, Analytica, nº44, 1986, p.66. 
[19] Lefort R. e R., La distinction de l’autisme, Paris, Le Seuil, coleção Champ Freudien, 2003, p.8. 
[20] Lacan J., O Seminário, Livro I, Os escritos técnicos de Freud, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1979, p.124. 
[21] Num artigo clássico, o psiquiatra Henry Faure, numa abordagem fenomenológica, havia descrito suficientemente “o investimento delirante dos objetos”. Há aí, segundo outras modalidades, um investimento autístico dos objetos. Cf. Faure H. Entretiens psychiatriques, 1953, L’Arche, Paris. 
[22] Miller J.-A., “Les psychoses”, Lettres de l’E.F.P., nº27, 1979, p.127-138. 
[23] MALEVAL, J. “Sobretudo verbosos” os autistas. In: Latusa 12 – Objetos soletrados no corpo. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2007.
[24] Nazeer K., “Send in the idiots, or how we grew to understand the world”, Bloomsbury, Londres, 2006. 
[25] Jardine C. “L’autiste qui amait le nombre ”, The Daily Telegraph, Londres, trad : Courrier International, nº 828, de 14 de setembro de 2006. 
[26] Lefort R., “Les trois premières séances du traitement de l’enfant au loup », Ornicar ?, nº28, 1984, p.59-68. 
[27]Lacan J., “O Aturdito”, Outros Escritos, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2003, p. 475. 
[28] Maleval J-C., “Sobretudo verbosos” os autistas, op. cit. 
[29] Ibid. 
[30] Lacan J., O Seminário, Livro X, A Angústia, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1979, p.300. Jean-Claude Maleval comenta esta passagem desenvolvendo as indicações dadas por Jacques-Alan Miller em seu artigo sobre “Jacques Lacan e a voz”. 
[31] Lefort R. e R., Les structures de lapsychose, Paris, Seuil, 1988, p.73 
[32] ibid. p. 64. A declaração é a propósito do Menino-lobo, mas os autores acrescentaram uma nota “Como no autismo. É o que mostra Marie-Françoise, impaciente para ter a sua sessão e que me vira as costas assim que entra na sala de atendimento. Um componente autístico comparece tão logo não há mais objeto em causa entre o Outro e o sujeito; o que caracteriza o autismo é, de fato, um Outro sem objeto”. 
[33] Lefort R. e R., Naissance de l’Autre, Paris, Seuil, 1980, p. 117-118 
[34] Lacan J., O Seminário, Livro I, op.cit., Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1983, p. 125. 
[35] N.T.: Lacan faz um trocadilho homofônico: Il meuble l’angoisse de l’Achose.

RESENHA : ASPERGER - UM DOS NOMES DOS AUTISMOS


P
or Anamaria Vasconcelos 


Ana Martha Maia, psicanalista, membro da EBP/AMP, publica na revista Grandes Temas do Conhecimento - Psicologia , nº 33 - Especial Autismo, o artigo " Asperger - um dos nomes do autismos".

Em uma linguagem clara, sem perder a precisão conceitual, o artigo aborda a posição da psicanálise de Orientação Lacaniana sobre um tema tão atual como controverso que é o autismo. É ilustrado por exemplos retirados de três filmes que muito nos ensinam sobre o autismo, a saber: " Autism is a world", " Temple Grandin" e " Outras vozes".

Como introdução, a autora mostra que o autismo se tornou um problema de saúde pública, tendo em vista o elevado número de crianças hoje assim diagnosticadas. Os crescentes índices são alarmantes, uma vez que em poucas décadas é triplicado o número de incidência de crianças nessa categoria diagnóstica. Considerando essa quantificação, Ana Martha Maia faz interrogações preciosas sobre os critérios diagnósticos que hoje tem sido adotados, bem como a função desse diagnóstico.

“Ter um corpo” implica um processo que envolve o uso da linguagem. Para uns tantos, isso é tão angustiante que chega a repercutir em um modo próprio de lidar com a linguagem, assim como, com o estabelecimento dos laços sociais.

Nem tudo é Asperger – com a expressão de um rapaz do filme “Outras vozes”, a autora abre uma reflexão histórica e etimológica do termo autismo, bem como o surgimento da síndrome de Asperger na nosografia psiquiátrica. Localiza seu surgimento até sua eliminação enquanto diagnóstico na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM - V, em que está inserido como parte do Transtorno do Espectro Autista.

Diferença e segregação - outra expressão com que a autora interroga o que se tem feito em nome de uma inclusão. O uso do termo “autismos”, no plural, justifica a autora, é um assinalamento que há o singular em cada autismo e, por conseguinte, um modo único de ser naqueles assim diagnosticados. Descobrir e fortalecer o jeito próprio de viver de cada criança é ajudar ao surgimento do sujeito, um trabalho delicado que exige uma escuta atenta sustentado por uma formação teórica do psicanalista. Do mesmo modo, caminhar ao lado dos pais, ajudando-os a relançar um futuro para seus filhos, só é possível se nos dedicarmos a aprender o que o autista nos ensina sobre suas possibilidades e suas paixões pelos objetos. O respeito a esses objetos, considerá-los na direção do tratamento, é fundamental para a Orientação Lacaniana.

Banho de Linguagem - a partir de Lacan, Ana Martha nos fala como se dá o encontro com a palavra e suas repercussões. É com essa compreensão que afirma o autismo como uma posição do ser.

A borda corporal é aquilo que constitui as possibilidades de haver corpo, dentro e fora , um Outro. Ela poderá ser constituída quando o significante toca o real do corpo, produzindo um furo.

Ana Martha "Caetaneando" nos lembra que " cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é." Portanto não há espaço para imposições de modo de ser, sigamos na Batalha do Autismo.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Seminário Autismo e Psicose Infantil - da clínica à política, e retorno - Barra da Tijuca - Corpo, sintoma e gozo.

"Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família, que nos fala. [...] Somos falados e, por causa disso, fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado. Com efeito, há uma trama – chamemos isso de nosso destino."    Jacques Lacan, Seminário 23.

"Assuntos de família - seus enredos na prática" é o tema do VIII Enapol (Buenos Aires, set/2017) que abordará os efeitos do declínio do pai na família contemporânea e a prática da psicanálise a partir do Um sozinho. Se o inconsciente é o discurso do Outro, da família (Miller, El ultimísimo Lacan), do Outro ao Um "ser seu sinthoma é livrar-se das escórias herdadas do discurso do Outro, depois de tê-las percorrido" (Lacan, Seminário 24: L´insu que sait de l'une bévue sáile a`mourre).

A cada encontro do Seminário na Barra, trabalharemos um caso clínico articulado aos eixos temáticos deste Enapol, visando corpo, sintoma e gozo nos "assuntos de família".

Bibliografia inicial:
Brousse, Marie-Hélène. Un neologismo de actualidad la parentalidad. Enlaces n°11. 2006.
Freud, S. (1909) Romances familiares. Obras Completas, vol IX. RJ: Imago. 1982.
Fajnwaks, F. Famílias sintomáticas. Opção Lacaniana on line n°10. 2013.
Lacadée, P. L'autorité de la langue. La Petite Girafe n°23. 2006.
Lacan, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo. RJ: Zahar. 1985.
Laurent, Eric. A criança no avesso das famílias. A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise. III Encontro Americano, XV Encontro Internacional do Campo Freudiano. RJ: Contra Capa Livraria. 2007.
Laurent, É. A análise de crianças e a paixão familiar. Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum. 2010.
Miller, J-A. Affaires de la famille dans l'inconscient. Lettre Mensuelle n°250: L'Envers des familles. 2006.
Miller, J-A. Leitura crítica dos "Complexos familiares" de Jacques Lacan. Opção Lacaniana online. http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n2/pdf/artigos/ jamleitura.pdf

Coordenação: Ana Martha Maia (EBP/AMP).
Colaboradoras: Bruna Brito e Valéria Glioche.
Comissão de Tradução : Amanda Nunes, Ana Martha Maia, Anna Carolina Nogueira, Astrea Gama e Silva, Bruna Brito, Luiza Sarrat Rangel, Maria Elizabeth Araújo, Marina Valle, Pietro Mega, Sônia Leão e Valéria Glioche.
Datas: 8 fevereiro, 22 março, 19 abril, 17 maio, 21 junho, 19 julho e 16 agosto. Quartas-feiras. 12:30h.
Local: Rua Rui Frazão Soares, 121/sala 205. La Playa. Alpha Barra I.
Informações: anamarthamaia@gmail.com

*Aos inscritos que ainda não receberam, solicitar as traduções por email. 

Uma Escola Inclusiva


quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Abaixo-assinado sobre o autismo


Autismo - Sim à livre escolha do método de tratamento / Não à interdição da psicanálise

Senhor Presidente da Assembléia Nacional,

Senhoras e Senhores deputados,

Queremos chamar sua atenção para a deriva liberticida da proposição de resolução depositada pelo Senhor Fasquelle e noventa e três deputados junto à Presidência da Assembléia Nacional no dia 13 de outubro de 2016, convidando o Governo a "promover um tratamento do autismo baseado nas recomendações da Alta Autoridade de Saúde (HAS)", convidando-o ainda a "condenar e interditar as práticas analíticas sob todas as suas formas, pois não são recomendadas pela HAS". Estamos muito surpresos que esta proposição dê seguimento à intervenção do Presidente da República que, durante a Conferência Nacional do Deficiente, no dia 19 de maio de 2016, desejou que o 4o Plano do Autismo fosse aquele "do apaziguamento e da união. Porque devemos ter todas as respostas e as respostas mais adaptadas, sem preconceitos e sem vontade de impor uma solução antes que outra".

Ao contrário, a orientação desta resolução visa fazer adotar politicamente uma posição radical em um domínio complexo, caracterizado por dados científicos que não permitem senão recomendações muito prudentes.

Esta proposição procede claramente a um desvio das recomendações da HAS, sobre ao menos três pontos: 

ao querer transformar as recomendações em injunções, afirmando que os métodos recomendados são validados científicamente
ao pretender que a psicanálise se encontraria na lista dos métodos não recomendados, ao passo que a HAS teve o cuidado, na ausência de consenso entre experts quanto à pertinência da abordagem psicanalítica, de classificá-la na lista dos métodos não consensuais. Não consensual não quer dizer não recomendado. 

Cada um sabe que os debates em torno do autismo são de uma extrema complexidade. Sua acepção varia ao sabor das edições dos manuais de psiquiatria, e os diversos trabalhos não são capazes de explicar porque sua extensão parece ter se tornado epidêmica durante as últimas décadas, ao passo que eles permanecem bem prudentes quando se pronunciam sobre a qualidade dos tratamentos educativos. É consenso na literatura científica internacional que os tratamentos recomendados conhecem mais fracassos que sucessos - esses últimos nas meta-análises chegando dificilmente a 50%. Desde então, sobre o que se funda este projeto de resolução para chamar a decidir sobre problemas quanto aos quais os especialistas permanecem em grandes incertezas? 

Os deputados signatários consideram que existe "abordagens validadas cientificamente, que deram provas de sua eficácia". A HAS se mostra muito mais prudente. Dos três métodos recomendados (ABA, Denver e TEACCH), ela estima que só os dois primeiros atingem uma "presunção científica" de eficácia (grau B), a terceira "um fraco nível de prova" (grau C). Nenhum dos três chega ao grau A, o da validação científica. Por outro lado, o programa de Denver, recomendado pela HAS, se funda em parte sobre os conceitos psicanalíticos de M. Mahler. A partir de qual dose de psicanálise uma prática deveria ser interditada?

Os deputados signatários parecem desconhecer que a Federação Francesa de Psiquiatria, que eles põem em questão, não se pronuncia quanto à psicanálise com os autistas, por outro lado, ela permanece ligada à liberdade de escolha dos tratamentos. Que o Estado venha, com esse princípio, tomar partido nos debates científicos, não tem equivalente em um regime democrático, e não deixa de lembrar, cruelmente, derivas totalitárias.

Querer dar forma impositiva a "recomendações" seria desconhecer que, em matéria de saúde, as verdades de hoje podem não ser as de amanhã. Isso conduziria a levantar um obstáculo a toda tentativa de fazer avançar os conhecimentos sobre o tratamento dos autistas, atualmente lacunares e incertos. Os esforços para fixar o saber não fazem boa parceria com o progresso.

Senhoras e senhores deputados, é mais do que tempo de fazer escutar, nesse domínio delicado, a voz da razão e que os profissionais engajados há numerosos anos nos cuidados e no acompanhamento de sujeitos autistas, crianças, adolescentes e adultos, nos setores de pedopsiquiatria e nas instituições medico-sociais possam continuar sua tarefa em um clima apaziguado, em relação com os pais e com o conjunto do meio educativo.

Senhoras e senhores deputados, o pluralismo das formações e das práticas sempre foi a orientação dos políticos de saúde pública, para propor às famílias e aos pacientes uma livre escolha esclarecida pelos cuidados e acompanhamentos. Este projeto de resolução derroga fundamentalmente a esta orientação e, por estas razões, nós lhes pedimos urgentemente para não sustentá-lo.

Este abaixo-assinado será entregue para:
Monsieur le Président de l'Assemblée nationale
Mesdames et Messieurs les députés

domingo, 4 de dezembro de 2016

Seminário Autismo e Psicose Infantil - da clínica à política, e retorno.

A proposta de trabalhar a distinção do autismo visa circunscrever balizas que orientam a topologia dos circuitos de gozo, através da leitura de casos clínicos, atendidos em instituições ou no campo privado, e manter em aberto o debate sobre a Política da Saúde Pública e a Política da Psicanálise.
Nadia, Marie-Francoise, Robert e Maryse - partimos do que nos ensinam os clássicos dos Leforts, que consideram o corpo com furos, superfícies e bordas, e seguimos o fio condutor que percorre seus trabalhos: o significante-sozinho [significant-tout-seul], "da clínica à política e retorno", na expressão de Laurent.
Esta é a proposta de nosso Seminário, que no próximo sábado dará prosseguimento ao estudo sobre o caso Robert articulando o capítulo sobre a pulsão escópica (Les structures de la psychose: L'Enfant au loup et le Président, Paris: Seuil, 1988) à quatro textos publicados no site da 46a Journée da ECF: L'objet regard, que selecionamos e traduzimos para este nosso encontro.
Na segunda parte do Seminário nos dedicaremos ao debate sobre questões cruciais levantadas durante o Curso "Autismo e Psicose Infantil - política, clínica e prática em instituição", realizado no Hospital São Zacharias/Santa Casa da Misericórdia/UCAM, em que estivemos trabalhando com Marita Manzotti (EOL/AMP) e Daniela Teggi (EOL/AMP), na direção do Observatório sobre Políticas do Autismo - FAPOL. Foi uma experiência muito rica de transmissão da clínica e do trabalho da psicanálise de orientação lacaniana (surpreendentemente, sem tradução!) em instituições na Argentina, Brasil, Bélgica, França e Itália, em que conceitos foram abordados a partir de casos clínicos e questões sobre Políticas Públicas promoveram uma viva conversação.
Deste encontro de dezembro, depreenderemos questões que se desdobrarão para 2017, quando iniciaremos nosso quarto ano de trabalho!
Agradeço aos colaboradores, Comissão de Tradução e participantes pelo  que estamos realizando juntos e aos colegas da EBP/AMP que, generosamente, têm vindo "por conta e risco" compartilhar conosco suas clínicas.
Ana Martha Maia (EBP/AMP)
Coordenação

Colaboradora: Bruna Brito.
Comissão de Tradução : Amanda Nunes, Ana Martha Maia, Anna Carolina Nogueira, Astrea Gama e Silva, Bruna Brito, Luiza Sarrat Rangel, Maria Elizabeth Araújo, Marina Valle, Pietro Mega, Sonia Carneiro Leão e Valéria Glioche.
Data: 3 dezembro. Sábado, 10h.
Local: Sede da EBP-Rio. Rua Capistrano de Abreu, 14. Humaitá. Informaçõesanamarthamaia@gmail.com
*Aos inscritos que ainda não receberam, solicitar as traduções por email.





sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Seminário Autismo e Psicose Infantil - da clínica à política, e retorno - Barra da Tijuca

Corpo, sintoma e gozo.
"Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família, que nos fala. Escutem esse nós como um objeto direto. Somos falados e, por causa disso, fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado.

Com efeito, há uma trama – chamemos isso de nosso destino."
Jacques Lacan, Seminário 23.
"Assuntos de família - seus enredos na prática" é o tema do VIII Enapol (Buenos Aires, 14 e 15/set/2017) que abordará os efeitos do declínio do pai na família contemporânea e a prática da psicanálise, a partir do Um sozinho. Se o inconsciente é o discurso do Outro, da família (Miller, El ultimísimo Lacan), do Outro ao Um "ser seu sinthoma é livrar-se das escórias herdadas do discurso do Outro, depois de tê-las percorrido" (Lacan, Seminário 24: L´insu que sait de l'une bévue sáile a`mourre).

Assim, destacamos os seguintes eixos temáticos para nossos encontros de 2017: A família, ficção necessária; Segredos de família; As famílias e as instituições educativas; Maus garotos, crianças sozinhas; As novas leis de identidade de gênero e matrimonio igualitário: consequências subjetivas e familiares; e Sintomas familiares, famílias sintomáticas (http://www.asuntosdefamilia.com.ar/pt/template.php?file=Ejes-tematicos.html). A cada encontro, teremos um caso clínico relacionado a um eixo.

Na semana que vem, trabalharemos a questão "como se faz um corpo", tendo como referência o texto de Alexandre Stevens: "Fazer-se um corpo na adolescência" (http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/n20/fazer-se-um-corpo-na-adolescencia.html) e o caso clínico de uma criança que Valeria Ferranti apresenta no texto "Fazer-se um corpo", orientados no que Miller chama de "todo Lacan": do ultimíssimo Lacan a seu primeiro ensino.


Coordenação: Ana Martha Maia (EBP/AMP).

Colaboradoras: Bruna Brito e Valéria Glioche.

Comissão de Tradução : Amanda Nunes, Ana Martha Maia, Anna Carolina Nogueira, Astrea Gama e Silva, Bruna Brito, Luiza Sarrat Rangel, Maria Elizabeth Araújo, Marina Valle, Pietro Mega, Sônia Leão e Valéria Glioche.

Datas: 7 dezembro. Quarta-feira. 12:30h.

Local: Rua Rui Frazão Soares, 121/sala 205. La Playa. Alpha Barra I.

Informações: anamarthamaia@gmail.com



*Aos inscritos que ainda não receberam, solicitar as traduções por email. Para os participantes que ainda não conseguiram comprar o livro, fazemos pedidos diretamente à editora.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

COMPARECIMENTO FRENTE À COMISSÃO DA INFÂNCIA DO PARLAMENTO DA CATALUNHA

15 de Novembro de 2016

Em defesa da pluralidade de abordagens, a causa dos pais e a voz do autista.

Iván Ruiz


Presidente da Associação TEAdir de pais, mães e familiares de pessoas com TEA

Estimada presidenta, estimados membros da Comissão,

Como Presidente da Associação TEAdir de pais, mães e familiares de pessoas com autismo, quero agradecer muito sinceramente seu convite a participar no marco desta câmara, plural e democrática, na que desejamos ter um debate sustentado no tempo.

Queria, entretanto, começar minha intervenção expressando o incomodo que nos gera – e falo em nome de muitos dos pais que hoje represento – nos sentirmos empurrados a entrar num confronto de tratamentos para o autismo que está longe de nossos objetivos fundantes.

A Associação TEAdir foi criada para proteger uma sensibilidade diferente na hora de entender e tratar o autismo, que foi representada nas reclamações que a Associação Aprenem fez ao Congresso de Deputados, em 2010. Queríamos pensar que suas demandas foram feitas com a melhor das intenções – reclamavam a melhora da atenção às pessoas com autismo -, mas, em nosso entendimento, da pior forma, pois previam essa melhora a partir de uma única abordagem financiada pela administração, a comportamental. O posicionamento da entidade que represento é outro, e o convite a falar hoje aqui – a partir de minha dupla condição de pai e profissional – me permite expor isso.

1. A ação política em termos de autismo

Acreditamos firmemente que a oferta pública da atenção às pessoas com autismo e às suas famílias é uma questão que deve ser estabelecida pelas administrações e pelos profissionais que estão implicados na atenção direta às dificuldades pelas quais uma pessoa com autismo passa ao longo de sua vida. Como dizia o sociólogo Michel Gauchet, a política é o lugar de uma fratura da verdade. E, em termos de autismo, nem os pais, nem os profissionais, nem os políticos estamos em disposição de avançar com verdades absolutas.

2. Um lugar para o saber profissional

No debate sobre o autismo na Catalunha, nos últimos anos se produziu um deslocamento que nos preocupa. Passou-se do que deveria ser a melhora na atenção às crianças com autismo a uma batalha pelo tratamento mais eficaz. Escutamos alguns posicionamentos que caem no exercício de poder e na exigência da melhora de uns em detrimento da de outros. Se bem nós, pais e mães, possamos aportar nossa experiência no dia a dia e ao longo dos anos com nossos filhos, não nos corresponde nem elaborar o saber epistêmico nem contribuir a consensos profissionais. Empurram-nos a intervir num debate profissional que não nos corresponde, que não acreditamos que leve a lugar algum, mas no qual nos vemos sem poder escapar, se o que queremos é ser escutados como pais.

3. O ataque contra a psicanálise

Apesar de a Catalunha contar, desde 2012, com um Plano integral sobre o autismo, surgido do consenso de uma ampla gama de profissionais e do trabalho conjunto dos departamentos de Educação, Saúde e Bem-estar social, segue sendo questionada a formação e o exercício de alguns profissionais que trabalham na atenção pública. A associação que escutarão depois, Aprenem autisme, acredita ter encontrado a razão dos males do nosso sistema público: Eles localizam nos psicanalistas a causa da escassa melhora das crianças com autismo e propõem as técnicas comportamentais como as únicas cientificamente aceitáveis.

4. A evidencia científica

A fé na ciência, o que se denominou o cientificismo, está fazendo um desserviço ao desenvolvimento lento, porém firme, da comunidade cientifica internacional em matéria de autismo. A tão venerada “evidência científica” foi tomada por alguns como o estandarte de suas reclamações, até o ponto de tergiversar e fabricar supostas evidências que não puderam ser nem replicadas nem confirmadas. O método comportamental ABA (Applied behavior analysis), desenvolvido nos anos 60 por Lovaas nos Estados Unidos, foi denunciado por famílias e usuários por suas formas eticamente duvidosas. Os métodos baseados no ABA demonstraram uma eficácia limitada em contextos muito precisos e focalizados em algumas condutas muito concretas. Nenhuma generalização na pessoa que é um autista foi até agora demonstrada. E, se se trata de evidências, no plural, contamos com estudos que demonstram os resultados obtidos pela psicanálise e por outros tipos de abordagens terapêuticas. A atual fé cega na “evidência cientifica” revela uma aliança feroz entre a ciência e os interesses de mercado, que silencia as experiências singulares.

No que diz respeito aos pais, que somos os que vivemos com o autismo dia após dia e durante toda nossa vida, não acreditamos que exista nenhuma outra evidência que aquela que podemos verificar em nossos filhos e também naquilo que nos serviu. A evidência que lhes pedimos que seja considerada hoje aqui não é outra que a evidência testemunhal.

5. O direito à liberdade de formação

Nosso país conta com uma variedade de profissionais que intervém a partir de seu saber nos diversos momentos e situações pelas quais uma pessoa com autismo passa. Estes profissionais mantiveram, até hoje, seu direito a se formar da maneira que considerem mais adequada diante do desafio que supõe a abordagem do autismo de uma criança, um adolescente ou um adulto, e de acordo com sua própria ética. Pedimos que este direito não seja violado, porque precisamos do desejo sustentado desses profissionais para o projeto de vida que temos a nossa frente, como pais.

6. Pluralidade de abordagens do autismo

O campo da atenção precoce é hoje o centro de atenção das políticas sócio-sanitaristas . Contamos, na Catalunha, com uma rede de centros de atenção precoce sem comparação no resto do estado, a partir da qual se atende, certamente, o momento mais delicado da vida de uma criança que será diagnosticado de autista.

O autismo cristaliza durante os primeiros meses e anos de vida. Não costuma ser uma aparição progressiva, a de seus sintomas, senão uma irrupção brusca de um rechaço generalizado da criança ao outro. As intervenções feitas deverão ser direcionadas a ajudar a criança a entrar no vinculo com o outro, mas, além disso, - e é o que nós mais apreciamos – a respeitar seus próprios tempos.

Esta rede de centros, multidisciplinar e plural na formação dos profissionais que os integram, tem sido ultimamente menosprezada pela suposta presença excessiva de psicanalistas. Quero esclarecer diante desta comissão que em nenhum destes centros trabalham psicanalistas como tal. Poderão encontrar profissionais diversos que se orientam a partir da psicanálise para fazer frente às dificuldades das crianças com autismo, mas também a outros, que seguem, por exemplo, métodos cognitivo-comportamentais. Em nenhum caso encontrarão um predomínio de uma abordagem em detrimento de outras. De onde provem então a extensão da ideia de que existe um predomínio da abordagem psicanalítica na atenção precoce? Acreditamos que é a intuição, o respeito e a atenção à criança, como um sujeito em processo de construção, o que faz com que as intervenções da maior parte desses profissionais mantenham uma atitude de escuta e acompanhamento. Certamente é algo prioritário para a psicanálise, mas não nos parece que seja propriedade dela.

Constatamos então um mal-entendido, que tomou forma de ataque a uma suposta disfunção do sistema.

7. O autismo e a educação

No que diz respeito à educação, a situação nas escolas se agrava. A inclusão educativa deixou de ser um direito para todas as crianças para ser uma exigência, que as crianças autistas acusam mais dada à vulnerabilidade e a fragilidade que tem em relação com a demanda dos adultos, que lhes é própria. Esperamos o novo Decreto sobre inclusão do Governo da Catalunha, já anunciado, mas nos perguntamos: De que se trata quando falamos de inclusão? Trata-se realmente da inclusão da criança num edifício determinado, que leva a catalogação de ordinário – “normal”, como se costuma dizer –, ou da inclusão da criança no vinculo com os demais? Não é isto o que se espera também das crianças nos centros especiais ou específicos com os que conta nossa rede de centros públicos? As escolas chamadas especiais são, para algumas crianças com autismo, o melhor recurso para construir um ambiente diante do qual não se mostrem refratárias. Consideramos, por um lado, que os percursos possíveis pelas diferentes instituições educativas devem ser suficientemente ricos e diversos para que aquelas crianças que não podem, de nenhum modo, se incluir nas aulas ordinárias, tenham a possibilidade de fazê-lo em outros centros.

Isto é o que existe neste momento e que não podemos perder.

Ainda assim, convém ressaltar o erro claro que suporia colocar sobre a escola ordinária a responsabilidade de tratar o autismo. O trabalho de coordenação em rede dos diferentes serviços implicados é o que demonstra, cada vez mais, os benefícios para situar, também, a criança com autismo como protagonista do processo educativo.

Sem dúvida, a crise econômica deixou muitas escolas sem recursos suficientes, mas, sobretudo, prejudicou a confiança naquilo que as equipes educativas fazem: atender e promover o surgimento do consentimento da criança com autismo a ser educada.

O autismo nos confronta com uma singularidade irredutível. Cada criança autista o é a sua maneira. Se bem isto é certo para os seres humanos, é ainda mais verdadeiro no caso do autismo. Impossível tratar a todos os autistas da mesma forma. Esta é uma verdade experimentada a cada vez por pais, educadores, professores e terapeutas. Em consequência, nenhum tratamento, nenhum projeto educativo que parta do “para todos os autistas, o mesmo” poderá receber nossa confiança.

8. A reeducação

Finalmente, a reeducação. As crianças autistas despertam nos adultos uma vontade de restituição de tudo aquilo que se interpreta como o que lhe falta: falta de fala, de atenção, de interesse, de obediência, etc. Esta resposta do adulto esquece, em muitas ocasiões, que aquilo que a criança autista não faz pelos caminhos padronizados, supre de outra forma. As técnicas reeducativas que se exigem hoje para todos os autistas deixam claro esse fato, e pedem ao autista que responda aos ideais de normalidade que tem os adultos que lhe cercam. Pretendem ensinar o autista a não ser autista, da mesma maneira que pretenderiam ensinar um cego a ver, submetendo-o, por exemplo, a imagens em lugar de incidir no resto dos sentidos.

Estimados membros da comissão de infância, o que queríamos transmitir com essas oito indicações é uma argumentação em resposta a um ataque, ao que estamos assistindo nos últimos anos, aos pilares fundamentais de uma sociedade, a catalã, que conseguiu uma rede na atenção pública educativa e sanitária, reflexo de um tecido social e associativo, construído durante décadas de democracia. As vontades de incidir nos modelos públicos não deveriam poder se exercitar sem o diálogo e o consenso. Qualquer participação unilateral não será senão uma imposição, se um coletivo se erige no verdadeiro e único porta-voz de uma causa legitima, neste caso a dos pais. Convém desconfiar, então, daqueles que falam em nome de todos os pais, porque quando não baste com dedicar-se a seus filhos, passarão a exercer o poder sobre as vontades dos outros.

Queria agora falar de Héctor, meu filho. Quando constatamos que as coisas não iam como deveriam, ele tinha quase dois anos. Lembro bem da primeira psicóloga de um serviço publico com quem entramos em contato. Naquela primeira visita, nos avisou que passaria ao nosso filho um dos testes utilizados, em algumas ocasiões, para saber se se trata de um autismo. Tirou um conto de sua caixa e entregou a ele, queria – disse – avaliar como manipulava os objetos. Héctor o segurou com as duas mãos, girando imediatamente as abas do livro no sentido inverso, até que conseguiu, forçando a coluna, que o livro fizesse um “crack”. Então, ela preencheu decidida a caixa do teste correspondente deixando-nos saber que Héctor não manipulava corretamente os objetos.

Hoje Héctor já tem quase 11 anos. Mais além das dificuldades presentes, que lhes pouparei, é apaixonado por música, em concreto as Variações Golberg de Bach, a primeira versão que Glenn Gould fez em 56. Tem ouvido absoluto, toca piano, mas também extrai sons de todo tipo de objetos. Grava em seu Ipad suas composições improvisadas, sincronizando, por exemplo, os sons de um teclado, o giro frenético de um copo e a corda do vaso sanitário. São suas composições num estilo que lembra a experimentação musical infantil de músicos contemporâneos como Robert Gerhard ou Oliver Messiaen. Não temos dúvidas hoje de que seu interesse pela música, pelos sons, pelos ruídos, o silencio, provém daquele primeiro objeto de interesse: o objeto sonoro. Longe de menosprezar sua atividade primeira, de extrair ruído dos livros ou de fazer girar anéis, o trabalho que iniciou depois com a psicanalista que lhe acompanha até agora lhe permitiu levar mais além de seu autismo aquilo que começou como uma repetição ad libitum, como uma obsessão inútil – disseram alguns – de uma conduta que foi registrada, no teste, como um mau funcionamento. Penso que, se tivéssemos aceitado a proposta comportamental de modificar suas conditas “inúteis”, teríamos interferido gravemente em sua investigação singular.

Certamente, os livros de que mais gosta nestes momentos são os que contêm um grande número de páginas. Usa para seguir sua numeração e pronunciar os números em castelhano, catalão e inglês. Aprendeu a ler e a escrever numa relação muito intima com os sons das palavras que designam números e letras. No centro em que está se escolarizando, que favoreceu todos esses avanços, sabem que devem respeitar muito bem o gozo que ele extrai daí e não convertê-lo numa aprendizagem regrada, para que ele siga mantendo este interesse.

Para concluir, queria lhes explicar algo que, a partir do TEAdir, aprendemos das crianças com autismo. Donna Willians, de quem conhecemos os testemunhos publicados, se referia a sua experiência como autista dizendo que durante sua infância se debatia numa luta constante para, por um lado, manter o mundo fora, mas, por outro, para chegar a ele. Essa é a verdadeira batalha do autismo, que se livra em cada criança a partir do que pode chegar a ser um, seu, inquietante silêncio. Consideramos o autismo como o congelamento de uma criança no momento prévio à entrada na palavra e no vínculo com o outro. É nesse momento quando ele se detém, protegendo-se em circuitos restritos dos que obtém uma satisfação que lhes é absolutamente apreciada. Entendemos assim que o psicanalista Jacques Lacan se referisse ao autismo como o estádio nativo de todo sujeito, e que, para entrar no campo do outro, a criança tenha que consentir a perdê-lo. Quando isso não acontece se desencadeia a sintomatologia autista, que coloca os pais diante de um enigma que não pode ser resolvido com propostas padronizadas.

Uma criança autista é, em primeiro lugar, uma criança que se encontra imersa em dois processos realmente complexos:

1. Proteger-se da presença dos demais, aos quais sente como agentes da exigência de sua renúncia a seus objetos, a seus circuitos e a seus modos de buscar uma satisfação constante.

2. Extrair dos adultos tudo aquilo que lhe sirva para construir uma versão própria do funcionamento do mundo que lhe cerca. Esta construção, muito frequentemente invisível aos olhos do adulto e estranha para o senso comum, converte-se em seguida em seu centro de interesse, mas, além disso, em uma fonte de onde extrair um sentimento de vida.

Se a psicanálise nos permitiu encontrar o interesse no autismo de nossos filhos é porque os profissionais que se orientam nesta abordagem - psicólogos, certamente, mas também fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicomotricistas, pediatras, professores, educadores, musicoterapeutas, entre outros – estão especialmente atentos á forma como uma criança com autismo extrai do que faz um mínimo sentimento de vida. O que é isso senão aquilo em que estamos interessados qualquer um de nós?

Acreditamos finalmente que a atenção ao autismo não pode ser de outra maneira que global e multidisciplinar:

- A globalidade implica que a ajuda que se busca para a criança de maneira ambulatória não é suficiente, e que a atenção deve ser feita de forma extensiva ao acompanhamento das famílias, à adequação do âmbito escolar às necessidades da criança e à idoneidade dos espaços de ócio. É, de fato, este o modelo promovido pela Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência.

- E a multidisciplinaridade, que resulta imprescindível para poder responder às necessidades diversas da pessoa ao longo do tempo. Mais além das abordagens, técnicas ou tratamentos, a atenção às pessoas, promovida pelas atuais diretrizes europeias, deve responder às problemáticas, complexas em alguns casos, que surgem, sobretudo, quando o sujeito entra na puberdade e na idade adulta.

Somos conscientes de que não é este o objeto desta comissão, mas temos nas mãos, administrações, profissionais, políticos e famílias, um tema muito mais urgente do que hoje tratamos: os serviços sócio-sanitários para os adultos afetados pelo autismo ou algum transtorno mental severo, e a situação de alguns adolescentes que, com um diagnóstico de autismo, com a avaliação do CAD (Serviço de avaliação e orientação para pessoas com deficiência) favorável ao serviço residencial, com a impossibilidade real de viver e se apoiar em suas famílias, lhes é negado um recurso assistencial pelo fato de ter cumprido a maioridade. Quero fazer uma menção concreta de alguns dos meninos que acompanhamos em nossa associação e que se encontram nessa situação: Álex Peña, Roman Pisa e Carlos Lozano.

Assistimos em nossa associação a situação de urgência de algumas famílias que só podem fazer uso da única saída diante das crises severas de seus filhos: o ingresso hospitalar com a presença exigida dos pais durante todo o tempo do ingresso, que consiste em: nenhum tipo de abordagem terapêutica, alta dose de medicação e sistema de correias para manter o menino atado durante os momentos mais difíceis. As crianças com autismo são o centro de lutas ferozes, nas quais se vinculam interesses de todo tipo. Mas temos diante de nós uma realidade que não podemos prevenir: Que modelos assistenciais podemos oferecer hoje aos adolescentes e adultos que não encontraram uma solução exitosa para se sustentar num mínimo sentimento de vida?

A partir da Associação TEAdir lhes pedimos, então, que:

1. Liderem o debate das ideias ao redor do autismo.

2. Recolham as diversas sensibilidades em volta desta questão tão complexa.

3. Protejam os direitos fundamentais do exercício de nossos profissionais e a formação que eles decidam fazer livremente.

4. Solicitem o pronunciamento explicito dos diversos coletivos profissionais implicados, também das diferentes escolas de psicanálise, sobre a formação de seus profissionais e os princípios éticos de sua prática.

5. Atendam as petições diversas das associações que hoje estão representadas e de outras que trabalham fortemente para a melhora do autismo de seus associados.

Defendemos a pluralidade de abordagens e o direito democrático dos pais a escolher o tipo de tratamento que considerem mais adequado. Esta é nossa causa, como pais. Sobre o autismo de nossos filhos, tudo o que dissermos será uma interpretação nossa. As crianças autistas mantém uma relação direta com o inefável, e é a vocês e a nós a quem corresponde dar uma resposta.

VÍDEO COMPLETO DA SESSÃO:

http://www.parlament.cat/web/canal-parlament/activitat/comissions/index.html








Tradução: Anna Carolina Nogueira