sábado, 14 de fevereiro de 2015

Outras vozes – outro olhar sobre o autismo


 Durante o XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, no dia 22.11.2014, projetamos o filme de Ivan Ruíz, Otras voces, que causou grande impacto no público. Da mesa participaram quatro colegas da EBP – Paula Pimenta, Tânia Abreu, Cristina Vidigal e Elisa Alvarenga - cujos comentários incluo nesta resenha.

A EBP já tinha se incluído na política da psicanálise para o autismo no início de 2012, época em que sua Diretoria publicou o livro Autismos(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Também havia constituído un blog: autismoepsicanalise.blogspot.com.br , para difundir textos clínicos e teóricos sobre sua concepção do autismo.

En novembro de 2012, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo chamou clínicas especializadas para a assistência à população com autismo, com a exigência que se orientassem pela abordagem cognitivo-comportamental. Psicanalistas de diversas orientações se mobilizaram, fundando o Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, que conta hoje com mais de 500 filiados e é reconhecido pelo  Ministério da Saúde. A Comissão Autismo da EBP foi constituída como una forma de establecer laços com o Movimento.

No comentário do filme Otras voces, recordou-se que o filme surgiu na Catalúnia quando houve tentativas de rechaçar a presença da psicanálise no tratamento do autismo. Depois de um Fórum e de iniciativas de pais e profissionais para defender o discurso analítico, Ivan Ruíz pensou que um filme iria mais longe que a apresentação de un caso clínico.

O filme ensina que trata-se de algo complexo e constrói um tecido de imagens, vozes e testemunhos que afirmam e demonstram que há vários modos de estar na vida. Um divã atravessa as cenas e deixa claro de onde se fala. A partir da psicanálise e da experiência de encontro com autistas, destaca-se que o autismo é uma posição do ser.

Vozes e testemunhos dos pais trazem sua dor e seu espanto frente a um diagnóstico que não entendem e que os interroga. Interrogam suas falhas e sentem-se culpados. O testemunho se estende quando marca a diferença que o encontro com a psicanálise pôde trazer a estas famílias. Os pais passam a ter um novo olhar e uma nova escuta de seus filhos e resgatam sua função de pais, no lugar onde só havia culpa e desamparo.

O contraponto se apresenta na voz e presença carismática de Albert, em um ritmo que recorta, bordeja e, sobretudo, mostra as operações possíveis que alguém que recebeu este diagnóstico faz na sua relação com seus pais, seu amigo  e claramente em sua relação com a linguagem e com a fala. Relação que ele compara com um labirinto “um pouco tenebroso na entrada, mas quando se entra, parece que era mais tenebroso antes de entrar”. E logo, uma direção: “Penso que é muito importante que as pessoas reflitam sobre tudo o que estou dizendo”.

O filme apresenta o olhar diferenciado da psicanálise na relação com o autismo a partir do testemunho de um jovem e da experiência dos pais, avós, familiares e psicanalistas que praticam com estas crianças.

Na internet, os testemunhos dos que assistiram ao filme e que estão de acordo com os direitos de escolha, pelos pacientes e responsáveis, por seu tratamento em instituições públicas, são comoventes e decididos. Otras voces fala do desejo de fazer-se ouvir, daqueles que reagem contra a pressão exercida por associações anti-psicanálise. Há uma reação, como indicam, por exemplo, as recentes associações criadas por pais e amigos de pessoas autistas “com o objetivo de promover uma abordagem que leve em conta sua subjetividade e acolha suas invenções”.

Eric Laurent destaca o trabajo do autista de fazer calar o ruído da língua, o que torna a docilidade, o respeito e o silêncio pontos clínicos essenciais na abordagem pelos psicanalistas. O autista é aquele que tenta de todas as formas reduzir o equívoco ao silêncio. Mas devemos levar em conta o gozo que acompanha este cálculo onde a repetição do Um não consegue tratar o deslizamento permanente da lalação. Podemos acompanhar Albert em sua visita ao museu Tim-Tim. “É preciso que o sujeito construa seus modos de tratamento do equívoco que muitas vezes se encontra separado do corpo. E não funciona como o delírio psicótico que em alguma medida põe em jogo o imaginário do corpo”.

É impressionante a sensibilidade do diretor do filme para recolher um significante singular de Albert como ápice do filme, significante que traz a marca do que Lacan buscava em suas apresentações de pacientes, como a assinatura de uma relação particular com a linguagem. Albert conclui sua série de treze significantes  com “acostuflante”, palavra que lhe cai bem “para que soe estranha e também legal”.

Se nem tudo es “Asperger”, se há seu caráter, seu modo de estar na linguagem, há complexidade, e há principalmente a possibilidade de estar na vida de diversas formas e mesmo de uma forma “acostuflante”. E de falar com ironia do psiquiatra que encontrou um virus em seu cérebro. “Ele necessita tratamento”.

Na psicanálise de orientação lacaniana, é fundamental o testemunho do sujeito. Desde Albert até os autistas reconhecidos por suas invenções, trata-se de aprender com o sujeito, esvaziando o lugar do saber. Por isso, talvez, Ivan Ruíz esvazia o divã, que passeia pelos mais diversos lugares e dá a palabra aos mais diversos personagens no filme: pais, educadores, psicólogos, psicanalistas, na prática feita por vários. Como nos testemunhos de passe, pode-se ver nas entrevistas com Albert e com os diversos casais, uma pasagem do sofrimento inicial a uma satisfação no final. Efeitos da psicanálise. 


Elisa Alvarenga

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