quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Extensão autismo UFPR 2016

A mobilização promovida pela Escola Brasileira de Psicanálise, em torno da questão do Autismo, possibilitou a criação do Observatório do Autismo da EBP no FAPOL, e avança capitaneada pelos membros da EBP, fortemente, em seus objetivos, em várias cidades brasileiras, ocupando os espaços públicos e privados, capazes de aglutinar os heroicos guerreiros envolvidos nessa batalha, que são os profissionais de saúde, pais, educadores, familiares, cuidadores, legisladores, autoridades, etc.

O Ateliê de Clínica Psicanalítica da Orientação Lacaniana - ACPOL, inscrito em 17 de fevereiro de 2013 no LABRASIVO, do Instituto Lacan, interage com os mais variados segmentos da sociedade, promovendo diálogos com profissionais liberais, estudantes, psicanalistas, artistas, professores. Atento às demandas oriundas do “Universo Autista”, preocupado com a LEI Nº 12.764, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2012 - lei brasileira que Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, que qualifica como doença o comportamento autista, insatisfeito também com as consequências da edição do DSM-5, com a patologização da infância, e ainda, desconfortável com os resultados e os métodos de tratamento praticados, o ACPOL, a partir de 2013, assume a liderança na cidade de Curitiba, nesse campo de luta, inspirado no livro de Éric Laurent “A BATALHA DO AUTISMO”, Da clínica à política.

O ACPOL em sua inserção no Autismo utiliza como premissa a questão “o que o autismo pode nos ensinar”. Aplica no desenvolvimento dos trabalhos, nesse campo de pesquisa, estudo e ensino, uma estratégia sempre orientada pela singularidade do sujeito autista, em sua posição no mundo, e procura viabilizar a participação das pessoas que fazem parte do universo social de cada autista.

Em 2014 o Ateliê de Clínica Psicanalítica da Orientação Lacaniana começou a desenvolver trabalho de pesquisa e ensino junto ao Laboratório de Psicopatologia da UFPR, na linha de pesquisa “O Autismo, as psicoses e suas interfaces na Psicanálise”. E é dentro desta parceria com a universidade, que nesse mesmo ano de 2014, realizou o curso de extensão “O que o Autismo pode nos ensinar”, que agora, no segundo semestre de 2016, é reeditado, com uma temática mais abrangente, dentro de um formato mais participativo e com a colaboração de profissionais com larga experiência prática e teórica na área do Autismo.

Consciente do grau de dificuldade que é dialogar com um grupo heterogêneo de pessoas, em sua formação, onde muitos participantes desconhecem os conceitos fundamentais da psicanálise, o ACPOL preparou um conteúdo capaz de atingir adequadamente a todos os participantes, percorrendo os aspectos históricos e conceituais do Autismo, bem como as experiências acumulados por profissionais, pesquisadores e instituições de viés psicanalítico no campo do Autismo, abrindo espaço para o diálogo e troca de experiência com pais, cuidadores, autistas e profissionais da área da saúde e educação. Neste sentido novos colegas do Ateliê puderam compartilhar suas experiências, como foi o caso singular do trabalho relacionado com a temática da Educação, da Inclusão do Autismo e as Leis, apresentado por Elizabete Albuquerque, que também é mãe de autista, sobre o título muito feliz de “Os Vários Olhares Sobre a Inclusão”. Apresentação que suscitou amplo debate, onde aspectos como normalidade, inclusão, aceitação da diferença, foram exaustivamente dissecados e alçados ao nível de significantes mestres.

Nessa primeira semana do curso, Luiz Carlos Pinto Bueno, membro do ACPOL, articulou num texto intitulado “Singularidade, uma especificidade do Autismo”, aspectos fundamentais da visão psicanalítica do Autismo, e elementos determinantes a serem considerados nessa batalha que ora se faz. A questão da singularidade mexeu fortemente com os participantes e sensibilizou uma mãe de filho autista, que prestou um longo depoimento, emocionado, sobre a Via Crucis que teve que percorrer, e ainda percorre, no sentido da educação, da inclusão na escola, da não aceitação da diferença, da relação com a “normalidade” que ainda se impõe como modelo ideal e impacta significativamente, de forma negativa, no desenvolvimento da criança autista.

Oferecendo uma visão geral da questão, Gleuza Salomon, coordenadora do ateliê, abordou a origem do conceito do Autismo no diálogo entre Freud e Bleuler, a cisão na esquizofrenia, o autoerotismo, a descrição de Leo Kanner e sua noção de “autismo infantil precoce”, como especificidade clínica, a partir de seu artigo “Distúrbios autísticos do contato afetivo”, de 1943. Avançou no tempo passando por Margaret Mahler, Bruno Bettelheim, Frances Tustin e o ponto de vista desenvolvimentista. Discorreu sobre o ser-falante, sobre o mutismo, o modo verboso, a lalação, sobre o balbucio que se nutre na primeira infância da infinita repetição de sons, chamada lalíngua, num gozo sem fim, sem limites. Considerou a intrusão da linguagem que comporta um sacrifício de gozo, e a voz como objeto perdido, que, portanto, se diz áfona.

Elucidou a visão fenomenológica do Autismo e a marca da ausência fortemente observada nos autistas: eles não falam, não demandam, eles sugerem não possuir visão especular (não se reconhecem diante do espelho), o que sinaliza a possibilidade de tratar-se de sujeitos não constituídos.

Gleuza informou que o significante um, segundo Miller em 1,2,3,4, apresenta o sujeito como falta-a-ser, dividido entre a falta a ser e o não sentido, que é para Lacan o sujeito do inconsciente. Essa primeira escolha do significante um, já indica que o sujeito escapou da petrificação. Essa petrificação suportaria, em parte, a ideia confusa do autismo. Para Rosine e Robert Lefort, psicanalistas franceses que se dedicaram a clínica infantil, a petrificação é dada ao sujeito, por um significante de não-sentido, como no caso Robert, e o esforço da terapia, seria no sentido de se obter uma alienação do sujeito.

Outro fenômeno considerado por Miller é o de retorno à petrificação, que ocorre quando o sujeito vai ao campo do Outro e se desencanta. O sujeito busca, em curto-circuito, reencontrar a petrificação. É uma escolha do significante mestre, que seria como se tocar sempre, uma nota só, sendo essa nota a iteração do Um. Como fala Miller em 2011, sobre o Um só, o significante repete o gozo. No sintoma da ecolalia lê-se a repetição de uma fala, cujo significado nem sempre é compreendido pelo sujeito. Onde o significado do que diz, é o modo como responde a Um Real que lhe é próprio.

O Curso de extensão trabalhará os registros do Real, Simbólico, Imaginário, a partir de Lacan, em seu O Seminário: livro 3, as psicoses, utilizando os matemas, gráficos e esquemas, para transmitir o movimento de constituição do sujeito via alienação e separação e demonstrar que em psicanálise não há psicogênese: no autismo pode-se dizer que encontramos uma parte do sujeito na alienação, sem ter passado pela separação. O sujeito advém, é produzido pela articulação mínima do significante, é lógica pura. “Não é a alma que pensa. É o homem que pensa com sua alma, quando a fala passa pelo corpo e, no retorno, afeta o corpo que é seu emissor (Aristóteles, Anima).”

Localizará o lugar da psicanálise diante da epidemia do autismo contemporâneo. Esta epidemia que revela a crise atual do instrumento globalizado da clínica psiquiátrica e neurológica, do DSM - Manual de Diagnóstico Estatístico Mundanizado. Diante da progressão epidêmica do autismo que provoca o Mal-Estar nas classificações da clínica empírica e biológica do DSM. Acentuará o seu lugar na pluralidade de ações, na interface com os interlocutores provenientes dos múltiplos saberes, visando possibilitar que cada criança elabore, com seus pais e cuidadores, um caminho próprio, para prossegui-lo na idade adulta.

Elucidará o nascimento da psicanálise como uma resposta ao discurso da ciência contemporânea, sua contribuição à psicopatologia e à clínica.

Na psicanálise a escuta, a fala e o amor, recursos inerentes à transferência, são os instrumentos fundamentais na prática da clínica analítica. O autismo enquanto categoria clinica se encaixa aí, na medida em que há um consenso entre os especialistas de que a causa do autismo é ignorada: nem a desadaptação da aprendizagem, nem as disfunções no tratamento da informação, nem o desejo inconsciente dos pais, nem a genética, são capazes de explicar a sua gênese, a sua origem.

O método ABA se limita essencialmente a abordar comportamentos, se dedica em normatizar, sem buscar penetrar nas causas, nas funções respectivas destes e sem se preocupar com a vida afetiva do autista. O método TEACCH se apoia essencialmente no funcionamento cognitivo do autista e suas técnicas se fundamentam explicitamente nisso. A abordagem psicanalítica é a mais heurística porque não deixa de lado nenhum aspecto de funcionamento do ser humano.

O curso de extensão “O que o Autismo pode nos ensinar, em sua segunda semana, teve como conferencista a ilustre participação da Pós Doutora e membro da AMP e EBP, Ana Martha Wilson Maia, que brilhantemente desenvolveu dois encontros intitulados “O Autismo e seus pais. Uma leitura clínica” e “O Autismo e seus pais. Tratamento sob medida”. A mobilização em torno dos temas e da apresentação, por parte do público, foi tão surpreendente que ao final ela foi aplaudida, calorosamente, pelos participantes. A Ana Martha participou também do debate efetuado após a apresentação do filme Outras Vozes, de Ivan Ruiz, onde ela teve uma influente participação.

Na terceira semana do curso, nos dias 29 e 30 de outubro o filme A céu aberto, de Mariana Otelo, sobre o Courtil, foi projetado na Cinemateca de Curitiba e suscitou um excelente debate, com efetiva participação e discussão envolvendo pais de autistas, professores e profissionais das áreas da saúde e educação.

A programação do curso será retomada no mês de Dezembro. Ocorreu interrupção dos encontros em função da greve na UFPR, local onde os trabalhos estão sendo realizados.

Para esta parte do curso a Doutora em ciências médicas, Maria Virginia Filomena Cremasco, diretora do Departamento de Psicopatologia da Universidade Federal do Paraná, proferirá a conferência “Autismo é deficiência”?


O Professor doutor Guilherme Gontijo Flores ministrará a conferência intitulada “Entre Deus e a Dieta: origens psicopatológicas em Robert Burton.

Luiz Carlos Pinto Bueno. Membro do ACPOL- INSTITUTO LACAN- EBP

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Fazer-se um corpo[1]

 Bernard Seynhaeve
                                                                                                                          
            “Tento dizer que a arte está para além do simbólico. A arte é um saber fazer. Creio que há mais verdade no dizer da arte do que em qualquer blábláblá. E não se trata de pré-verbal, mas de um verbal na segunda potência[2]

O corpo é do domínio do ter. Tem-se um corpo, não se é um corpo. Em alguns casos, a percepção do corpo próprio como unidade imaginária separada do universo, separada do outro, não foi conquistada ou foi mal conquistada. A relação com o corpo fica então bizarra, o corpo é percebido como estranho, e até mesmo como estrangeiro. O corpo pode então aparecer como um monte de órgãos, fragmentado, com sensações e percepções desorganizadas e sem unidade[3]. É o corpo sem borda do qual podem testemunhar alguns sujeitos autistas.
Eu guardarei uma lembrança indelével de meu primeiro encontro com essa pequena jovem que eu chamarei de Émile. Ela tinha oito anos quando ela me foi apresentada pelas enfermeiras do hospital dia onde ela devia passar os primeiros anos de socialização. Foi ela que se dirigiu a mim com essa familiaridade suspeita que encontramos, de tempos em tempos, em alguns desses jovens sujeitos ditos “autistas”, me cumprimentando com um “Bom dia!”, como se ela me conhecesse desde sempre.
Espantado com esse ímpeto em minha direção, eu lhe respondi  perguntando como é que ela se chamava.
“Émilie”, ela me diz, “eu sou autista”. Eu lhe perguntei então o que era ser autista! Ela me convidou a me aproximar. Eu abaixei e ela me sussurrou no ouvido: “Eu faço cocô por todos os lugares e”, – associando o gesto à palavra - , “eu o passo por todos os lugares nas paredes”.
s havíamos acolhido essa criança no Courtil, ela ficou por uma dezena de anos em nossa instituição. Essa menina tinha  uma grande dificuldade constituir um eu (moi): um eu, quer dizer, uma imagem de seu corpo. De fato, ela não tinha corpo. Me parece que ela era muito mais um organismo, ou um saco de órgãos: assim teria ela o direito de se interrogar sobre a substância que escapava de seu corpo. Seria uma extremidade dela mesma? Obviamente, não era um dejeto. Ela conservava, portanto, preciosamente, seus excrementos.
Do volume à superfície
Ela devia ter uma imagem bizarra de seu corpo. O que ela via no espelho? De fato, ela não devia ter um eu como você e eu[4]: um eu que se mede tendo como referência uma imagem idealizada que fazemos de modo narcísico.
Émile tinha dificuldade em representar seu corpo. Para constituir a imagem de seu corpo, é preciso passar do volume à superfície: ora, Émilie não conseguia fazer isso espontaneamente. O que ela veio, portanto, fazer em nossa instituição, foi encontrar meios para se fazer um corpo, e realizar isso de uma maneira distinta daquela de um protocolo que teria consistido, por exemplo, em lhe ensinar o asseio, recompensando-a quando ela estivesse limpa. Nunca exigimos dela que cedesse esse objeto anal que ela guardava conscienciosamente. Nós não quisemos praticar esse método educativo, nós escolhemos uma via inteiramente distinta, centrada no objeto. Nós acolhemos seu sintoma.
O começo não foi fácil para o pessoal da instituição. Durante os primeiros meses, nós encontrávamos os excrementos dentro de sacos plásticos que ela estocava debaixo de sua cama.
O que é que aconteceu então para que se produzisse um fenômeno novo?
Talvez alguém tenha colocado tinta e pincéis à sua disposição. Assim, um dia me chamaram para ir ver seu quarto, o que eu nunca faço. Mas a insistência era tal que eu me vi obrigado a ir. Tinham algo para me mostrar.
Entrando no quarto, fiquei estupefato e maravilhado diante de uma formidável realização pictórica. Era incrível. Émilie tinha arrancado, de seu caderno de colorir, a silhueta que se dispõe à direita de seu modelo e que espera ser colorida. Ela tinha colado a página para colorir na parede e se colocou a trabalho. Ela percebeu que o joelho do personagem sentado podia igualmente fazer função de lóbulo da orelha de um outro personagem. Tinha assim deidido pintar esse personagem que era evidentemente muito maior do que a página. Seu trabalho ultrapassava sensivelmente as bordas da folha colada na parede. Resultava disso, segundo esse princípio, um magnífico afresco de personagens emaranhados que recobria uma grande parte das paredes de seu quarto, na sua altura, incluindo a janela. Seu trabalho ainda não estava concluído quando eu fui chamado. Penso poder dizer que se tratava de uma obra de arte. Em todo caso, para mim. Não necessariamente para ela, pois a questão estética provavelmente não contava para ela, o que lhe importava era a precisão do traço.
Onde começavam os corpos? Onde eles terminavam? Tal era a questão que tomava o sujeito.
Aconteceu algo novo para ela, quando ela havia feito esse deslocamento consistindo em passar de três para duas dimensões, em fazer o salto do volume para a superfície passar dos excrementos no saco plástico para a superfície, para a imagem do corpo. Era um avanço formidável. Um passo de gigante.
O trabalho de Émilie era rigoroso. Ela estava obcecada pela questão dos limites do corpo e de sua representação. Ela nos interrogava constantemente e com insistência sobre as múltiplas dimensões do corpo, sobre seu movimento..., o modo pelo qual ele ocupava o espaço da folha.

A borda do corpo
Assim, ela fazia, por exemplo, enormes esforços para tentar pintar a cor da pele. A cor da pele é uma mistura precisa de diversas cores. Ela perguntava: “Por que você diz que é o capitão Haddock nessa imagem aqui e que é também o capitão Haddock naquela imagem lá?” Ela não podia subjetivar a história de Tintin e do capitão Haddock, ela não podia conceber que para passar da gravura A para a gravura B era necessário construir um cenário que necessitava que o capitão Haddock girasse um quarto de volta. Aliás, a estória de Tintin não lhe interessava. O que lhe interessava era o traço que separa o corpo do espaço no qual ele evolui. Ela perguntava: “Porque o homem é maior do que a casa?” Ela nos indicava dessa maneira que ela mantinha essa grande dificuldade para representar a profundidade, a espessura, o volume do corpo. Uma praticante consultava então com ela uma enciclopédia de história da arte e lhe mostrava as pinturas dos pintores primitivos italianos nos quais os personagens mais eminentes, Deus, os santos, tinham um tamanho maior que o dos outros personagens.
Ela interrogava também a simetria dos corpos - negócio estranho esse da simetria dos corpos – e conseguia representá-los dobrando em dois, numa folha de papel que acabara de ser pintada, uma metade de rosto de rosto em gouache, e permitia obter uma imagem de uma simetria bizarra.
Ela começou então a se interessar pelas máscaras, passo suplementar que ela franqueava nessas pesquisas sobre o envoltório corporal.
Mas ela permanecia sempre insatisfeita e com dificuldades.
Ela se aplicava num esforço constante em querer obstinadamente traçar desenhar o traço perfeito da borda do corpo. E pouco a pouco, ela se aperfeiçoava. Um dia, um  praticante lhe propôs se inscrever numa academia de belas artes para lhe permitir encontrar uma resposta sobre a arte de pintar a cor da pele. A pele “branca” não é de forma alguma rosa! É preciso usar o amarelo de Nápoles, o ocre amarelo e um pouquinho do vermelho indiano, etc...
Mais tarde, lhe proporão expor suas pinturas. Ela percebeu que queriam comprar suas produções. Ela começou então a comercializar seus quadros e a construir uma forma de laço social.
Émilie permaneceu uma dezena de anos no Courtil. A foraclusão do Ego, - para retomar aqui a tese de J.-A. Miller, em Montpellier, em 2011 – exigiu dela uma invenção. A pintura é seu Nome-do-Pai. Para se fazer um corpo, tratava-se para ela de fazer acontecimento de corpo daquilo que escapava dele, de fazer sintoma de um traço sobre o corpo, de bordejar o furo do corpo. Nós nos prestamos à sua invenção. Depois ela foi embora. Pelo que eu sei, ela continua sempre esse trabalho com o mesmo rigor, e continua a expor e a vender suas obras.
Essa criança nos ensinou sobre a clínica da borda a partir do deslocamento metonímico do objeto anal em direção à pintura. O acontecimento de corpo – pois é bem de um acontecimento de corpo que se trata – consistindo em ceder o excremento nos consultórios, se acompanhou de uma cessão de gozo e inaugurou para ela uma nova era na qual ela faz uso de seus pincéis para traçar com rigor a borda do furo deixada pela cessão do objeto[5].

Tradução: Cristina Drummond
Revisão: Tânia Abreu





[1] Bernard Seynhaeve é psicanalista em Lille e diretor do Courtil. Ele é membro da Escola da Causa Freudiana. Exposição apresentada nas 42as jornadas da Escola da Causa Freudiana, “Autismo e psicanálise”, nos dias 6 e 7 de outubro de 2012 em Paris.
[2] Lacan J., O Seminário, livro 24, L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977), aula de 18 de janeiro de 1977, inédito.
[3] Marga Auré, « Le corps du schizophrène : quelques références théoriques », site da ECF.
[4] Reportar-se ao comentário de J-A Miller no Segundo Forum de UFORCA em Montpellier, em maio de 2011.
[5] Ler a esse respeito, “Les sujets autistes, leurs objetes et leur corps”, texto proposto por Éric Laurent na conversação clínica, A l’écoute des autistes, Des concepts et des cas. Paris, 30-06-2012.

Que prática clínica com a criança autista?


Véronique Mariage

Com o ensino de Lacan
Lembremo-nos de início de algumas reflexões e avanços no ensino de Lacan sobre o pai que permitirão melhor apreender a particularidade das crianças autistas, psicóticas, assim como aquela de seus sintomas.

No primeiro tempo de seu ensino, a partir da clínica da psicose e da fobia, Lacan mostrou o lugar essencial da função simbólica do pai. Ele chamou esta função pivô de Nome-do-Pai. Esta assegura ao ser falante a ligação entre o significante e o significado, ela é o ponto em que se amarram o significante e o significado. O Nome-do-Pai é a ancoragem simbólica que permite ao sujeito o acesso regulado a seu ser vivente e sexuado. Ele permite igualmente ao sujeito se atribuir o fato de que ele fala e que ele pode parar o sentido pelo fechamento de uma significação.

O Nome-do-Pai vem assegurar os efeitos de sentido, garantir o efeito fálico, estabilizar o sentido sexual. Se o sujeito não pôde se apropriar deste pai que garante e assegura a estabilização do laço do significante e do significado, então a capitonagem da significação desaparece, o sujeito é invadido por coisas inomeáveis e tudo se mistura. O lugar do sujeito não está assegurado quando fala, o Outro se impõe, fala através dele e fora dele. É o que podemos reconhecer no automatismo mental e na alucinação.

A criança psicótica é um sujeito que não pôde suficientemente capitonar a linguagem com a finalidade de se extrair do Outro. O sujeito autista mais particularmente é aquele que não pôde entrar na dialética da palavra, aquela que permite que um significante represente o sujeito para um outro significante. Ele pronuncia palavras, mas não as utiliza. Ele é as vezes mudo, ou ao contrário, ele é  outras vezes  falador, "verboso", como diz Lacan. O palavreado é uma utilização da língua em que a enunciação está ausente. Assim o sujeito autista não entrou no discurso do mestre, o que tem como consequência fixá-lo no UM sozinho. Ele é falado ou fixado pelo Outro. Ou ainda, na falta de se servir da linguagem para produzir um endereçamento  ao Outro, o sujeito autista se serve da língua para gozar. O encontro de seu ser em torno do ponto "a" de gozo, ponto do qual ele não está separado, constitui seu auto-erotismo. Ele está inclusive no Outro, nisso ele é (a-sujet). A criança autista que não pôde simbolizar a presença-ausência lida em especial com o excesso da presença do Outro. Assim, ela se tranca em seu retraimento autista, anulando o Outro e seu objeto ou tentando se extrair por meio de seus sintomas.

Há dois movimentos a operar no tratamento das psicoses, diz Éric Laurent. Há de início aquele de produzir um tratamento do gozo pela língua se fazendo de parceiro do sujeito, oferecendo a ele sustentar um Outro que organize, pontue, pare. Este trabalho de tradução, como Éric Laurent nos propõe, estabiliza ao mesmo tempo: a língua não é mais compactada, holofraseada, mas pontuada. Há igualmente um segundo movimento, aquele de operar um tratamento de gozo que somente pode se simbolizar, que implica o corpo e que somente pode ser apanhado pelo sintoma com a função de nominação (1). É todo um programa, então!

Como acompanhar o sujeito ao se construir uma instituição sob medida que estará suficientemente em sintonia com a posição do sujeito em sua relação com a fala e a linguagem, em função então da receptividade do sujeito em relação à palavra e em função de sua implicação no seu dizer? Como permitir ao sujeito construir por bricolagem um modo de laço social que só pode ser particular? Mas também como o sujeito poderia se extrair do circuito infernal no qual ele se fecha e construir para ele um corpo suficientemente esvaziado de um excesso de gozo? É o que eu gostaria de fazer vocês compreenderem por meio do caso de Lisa, que é acolhida no Courtil há cinco anos.

Lisa é autista
No berçário
Quando nós encontramos Lisa para sua admissão no Courtil, ela está com três anos e meio. Ela agora tem oito anos. Quando o serviço de berçário e os pais a encaminham, sua vida curta já está bem marcada pelas dificuldades que levaram Lisa a circular em diferentes lugares.

Aos seis meses, Lisa é acolhida no berçário com seu irmão mais velho de dois anos. Este acolhimento da continuidade a uma visita dos serviços de consultas de crianças recém-nascidas que encontraram a família em um estado de grande precariedade. Os pais de Lisa são psicóticos e muito desprovidos frente à educação de seus filhos. Lisa sofre de uma falta de cuidados os mais elementares. O inverno chega, as criança têm frio e fome. Lisa é encontrada inerte em seu berço. Depois de uma hospitalização, Lisa e seu irmão são então colocados no berçário na expectativa de reorganizar condições de vida mais favoráveis. De início, eles ficam ali oito meses. Uma nova habitação encontrada e um dispositivo de ajuda a domicílio organizado permitem um retorno das crianças à casa. Mas não são suficientes para garantir sua segurança.

Aos dezoito meses, após a constatação do espancamento do irmão, as duas crianças são novamente acolhidas no berçário. É a partir do berçário que a mãe, indo e vindo, participa da vida cotidiana das crianças. Assim, Madame D. vem regularmente dar banho em sua filha. Muito ligada a Lisa, nunca faltará a seu dever. Nesta época, o pai acompanha por vezes sua mulher em suas idas e vindas, mas é difícil se interessar pela vida de suas crianças. Ele está muito preocupado com as ideias de perseguição das quais não pode parar de falar e que muitas vezes tenta conter pelo álcool.

Na admissão no Courtil
Quando nós a encontramos pela primeira vez, Lisa tem três anos e meio e evoluiu muito. Desde que mora no berçário, ela se apropriou de muitas palavras. Nós não podemos dizer, no entanto, que ela fala. Assim ela nomeia os objetos de seu entorno, sustentada pelo outro que os nomeia, o que constitui seu laço mínimo ao outro. Quando está desprendida, Lisa se vira toda sobre ela mesma, fixando uma de suas mãos ou um objeto que ela apresenta sob seu olhar. Ela acompanha seu rodopio com uma pequena cantiga que ela cantarola. É por este movimento autístico que ela constitui durante um tempo o seu corpo.

Por outro lado, Lisa não se engana, reconhece sua mãe, pode chamá-la a seu modo: "É a mamãe de Lisa, é sua mãe", e se coloca sobre seus joelhos. Lisa pode reconhecer sua mãe entre as outras mas, quando a mãe a deixa, Lisa não chora, não tenta segurá-la. A mãe desaparece e não faz falta para Lisa. Como condição de sua entrada no Courtil, nós montamos uma primeira circulação. Madame D. virá passar algumas horas com Lisa no Courtil, não para os cuidados, mas para brincar com sua filha. E Lisa retornará ao berçário para passar os fins de semana.

Seus gritos e o deixar cair
Nesta época, Lisa não chora nunca. Pelo contrário, ela dá gritos insuportáveis. Diante do insuportável de seus gritos, nós tentamos em reunião apreender sua origem.

No Courtil, nada indica como estar presente junto aos sujeitos psicóticos. Aqueles que ali trabalham não se engajam sob um título que determinaria um saber-fazer que já esteja lá. Cada um se implica enquanto sujeito e com o que causa seu desejo. Há então que prestar contas de seu encontro com estes sujeitos nas reuniões, com a finalidade de elaborar a clínica produzida pelo ato de cada um colocado frente ao dos outros. Isto é essencial porque é por este ângulo que é possível ao que intervem não trabalhar unicamente com seu fantasma, com o que imagina que seria bom para a criança e que constitui a razão pela qual ele está engajado junto a ela. O que causa seu desejo deve se transformar em desejo de saber.

Este deslocamento indispensável do que causa o desejo de cada um em desejo de saber é a condição para que a prática em instituição se baseie na psicanálise aplicada. Esta função é ligada ao analista e é da responsabilidade do diretor terapêutico, quer dizer, de Um que tenha tomado suficientemente a medida, em seu tratamento, do que causa seu desejo e que pode mobilizar o desejo de saber. Quer dizer, alguém que possa sustentar a passagem do que não se sabe a um outro eu não sei. Esta função é tanto mais necessária junto aos participantes da equipe que não estão engajados em uma análise.
É Lisa que vai nos indicar possibilidades de trabalho. Nós ressaltamos que, assim que "a relação" com ela é interrompida, assim que as pessoas começam a falar sem que ela esteja implicada na conversa, Lisa dá gritos ou diz "Vaicair". Seus gritos surgem também quando ela para de comer. Quando dizemos "Acabou", ela deixa cair seu prato. Ou ainda, quando ela toma banho, ela diz "Vaicair" e começa a uivar. Intervir diretamente e demandar que ela pare de gritar a precipita no pior. Ela procura com suas gritos a irritar o outro, vigiando-o com o canto do olho, procurando a voz grossa com júbilo. Extrai-la então do olhar, excluindo-a para encontrar um ponto de basta para este circuito de gozo a conduz ao colapso: Lisa cai, golpeia seu rosto, arranca seus cabelos.
Lisa é então o objeto deixado cair. Ela encarna este deixar-cair girando sobre si mesma, até perder o equilíbrio e cair. Ela sobe também nas cadeiras e mesas, fica na beirada prestes a cair, quase cai marcando um tempo de parar, a fim de que alguém intervenha para retê-la. Lisa, que começou a falar ultimamente, interpela tudo o que ela encontra com um "Comovocêsechamavocê?", ou pede que se nomeie tudo o que cai sob seu olhar. Deste modo ela se torna sociável.

Tocados pelo abandono do qual Lisa é vítima tão jovem, os que intervêm na equipe são levados a “materná-la”. Na reunião clínica eles se perguntam se ela deveria viver com crianças tão loucas e reivindicam que ela frequente uma escola onde ela possa encontrar outras crianças menos comprometidas. A reunião é tempestuosa. Outros se perguntam sobre o estatuto de seus gritos. Lisa grita sem que se possa compreender a razão ou quando nós lhe endereçamos uma demanda. Ela acompanha então seus gritos por um movimento de recuo para escapar de nós, é o que parece. Assim ela se recusa a ser o objeto de nossa demanda?

Intervir sobre o objeto, sem falar
A partir de outros fatos encontrados nela, a reunião desliza para uma série de hipóteses, para entender o que está em jogo em sua relação com o outro. Anne conta que quando Lisa termina de comer, ela diz primeiro: "Lisa terminou", depois ela faz seu prato deslizar até a borda da mesa e o deixa cair. Lisa faz o mesmo com o seu copo que ela derruba. Frequentemente, ela em seguida cai da cadeira e grita. Anne ressalta que quando Lisa diz: "Lisa acabou", responder-lhe: "Ok, você acabou" não tem nenhum efeito. No entanto, sem dizer nada, basta ela deslocar o prato dez centímetros e Lisa pode, então, passar a outra coisa sem problema.

Este ato que pode parecer inofensivo nos parece de repente essencial. Ele nos diz o quanto a palavra de Lisa, que é apenas um refrão, não a separa do objeto. Falar com ela, fazê-la falar, responder à sua palavra apenas reforça este refrão. Lisa nos indica de preferência que há lugar para intervir, no tempo de corte com o objeto, sobre o objeto. Com esta pequena chave que Lisa nos faz saber, nós podemos desde então ser parceiros em um bom lugar, para que ela possa construir sua relação com o mundo. Na reunião, querer reparar o outro maternal ou social é esquecido para dar lugar à elaboração clínica que oriente.

Se apropriar da linguagem
No a posteriori do trabalho que já dura 5 anos, nós podemos reconstruir como Lisa se apropriou da linguagem para construir um mundo à sua medida. Como podemos ser com Lisa um parceiro que organize, pontue, pare?

Nomear pela holófrase ou o Um, ou quando as palavras são objetos
Uma colega pontua que quando o "Vaicair" está quase surgindo em seu banho, deslocá-lo para "Vaificarcheirosa", por exemplo, e permitir que ela o repita, faz com que Lisa tome seu banho calmamente. Como o prato é movimentado, as palavras podem se movimentar na condição que seja UM, como os objetos, se poderia dizer.

Lisa tem prazer também em entrar no código do outro, minimamente, a seu modo. Frequentemente, ela concentra nosso olhar em um objeto que ela aponta com o dedo, com a pergunta "Oqueéaquilo?" Ou "Queméele?" É preciso sempre responder. Se lhe respondemos com uma palavra, ela a repete, em seguida ela espera que se repita por nossa vez, e depois ela mesma o repete uma vez mais. Se respondemos com uma frase curta, ela extrai um pedaço da frase que ela holofraseia como o exemplo “Vaificarcheirosa”. O elo se fecha e Lisa pode se ligar novamente a esta massificação da linguagem. Em um primeiro momento, Lisa está colada ao significante, os significantes que nomeiam seu mundo só fazem Um, nada os separa.

Nomear o outro via o objeto que o representa
Os que intervêm vão e voltam. Quando Lisa nos encontra, ela nos aborda sempre com as mesmas palavras. Ela diz nosso nome, depois nomeia os objetos que estão a seu redor mas também isto que singulariza cada um, ou seja as palavras que nasceram do trabalho e do laço singular que ela instala com os diferentes técnicos.  O mais surpreendente  é que ela repara essencialmente o que marca o desejo de cada um, o objeto que engancha esse desejo e no qual ela toma parte. O mundo de Lisa se organiza.

Aparência do imaginário
Ao mesmo tempo, a mãe de Lisa vem visitá-la no Courtil e passa algumas horas com ela para jogar. A colega que acompanha estas visitas não fica com elas, mas vai e vem, ela entre com alguns jogos que mostra para Lisa e sua mãe (alguns cubos, uma pequena boneca com objetos de seu quarto e do banheiro, assim como um aparelho de sala de jantar de brinquedo) e se ocupa de outra coisa. A cada vez, Lisa pega estes objetos, os apresenta e nomeia para sua mãe, depois cria pequenas cenas representando sua vida cotidiana. Estes são retomados por ela em curtos ateliês. Lisa começa a poder falar de “AmamãedeLisa” que não está lá, de    “AmamãedeLisa” que está no ônibus vindo visitá-la no Courtil. Nestes ateliês, ela constrói pequenas histórias em que ela põe em cena seu irmão, seu pai, sua mãe e Lisa. Uma vez ditas, elas são sempre repetidas. Eles se cumprimentam, se despedem, manipulando a porta da pequena casa.

Ao ganhar idade, Lisa deixa o berçário para integrar o Courtil Week-end (grupo que acolhe no final de semana algumas crianças que não podem ficar em família).

Surgimento da alucinação
Quando a mãe de Lisa está ausente, ela pode agora estar presente em seu discurso. Paradoxalmente, Lisa está pior: ela vê sua mãe aparecer de noite sob forma alucinatória.  Ela acorda gritando aterrorizada, aponta para o canto do teto ou a janela, e diz: “MamãeMarie está ali, os olhos grandes olham, tem medo Lisa”. Lisa se bate, faz xixi na cama e se queixa.  É preciso então ter tempo para trocá-la e trocar sua cama, para que ela possa dormir. Frequentemente, a técnica que está presente à noite a encontra dormindo contra a porta do quarto de plantão. Se a mãe de Lisa falta, o significante não vem no entanto nomear esta ausência.  “MamãeMarie” vem, impõe sua presença sob forma alucinatória.

Quando o fenômeno alucinatório se torna mais e mais invasivo, Lisa consulta um pedopsiquiatra exterior à instituição que prescreve um antipsicótico. Desde então, regularmente, Lisa faz consultas com ele.

O insuportável da ritualização
Em ateliê, no hospital-dia, durante estes momentos de trabalho nos quais ela se cola em um parceiro, Lisa fica muito presente e apaziguada. A dificuldade surge agora quando a atividade é interrompida. Isso pode se produzir de diversas formas: por ela mesma que para de repente, quando o profissional se torna muito presente em seu jogo, quando uma outra criança invade ou quando isso fala em torno dela. Lisa retorna, então, aos seus gritos insuportáveis e se joga no chão se batendo. "MamãeMarie” surge com seu olhar malvado. Muito frequentemente ela defeca, apesar de já ter adquirido o controle. Somente a intervenção de uma técnica exterior lhe permite sair dando-lhe a mão que ela agarra, convidando-a a mudar de lugar. Lisa se reconecta então a este outro sempre da mesma maneira, situando-o em sua função mas também enumerando todas as atividades que ele realiza com ela.
Lisa volta de curtos períodos em família. Ela constrói, assim, um começo de circulação de um a outro para outra coisa. Mas estes circuitos se fixam. Estes se transformam em rituais imutáveis que ela exige. Esta exigência se impõe a toda demanda de objeto que é preciso satisfazer de imediato. À mercê da exigência imperativa incessante, todo mundo se cansa.

Uma circulação regrada pelo corte
Como se desligar, então, disto que se impõe assim perto de três anos de trabalho? É o insuportável que nos orienta. Tudo se torna presença em demasia: os rituais, as alucinações, os gritos, as automutilações, os insultos das outras crianças que não a suportam mais, as demandas impossíveis de satisfazer, etc.

Mas um ponto nos surpreende: quando Lisa vai mal em algum lugar, nós ficamos sabendo que não é o caso em outro, na medida que os lugares sejam diferenciados. Diante do excesso, nós não temos escolha. Extrai-la do lugar em que se instalam seus circuitos de gozo nos parece uma possibilidade de prosseguir no acolhimento desta criança.

Nós damos lugar a novos lugares de circulação, em outro lugar. Quanto a cada vez que o insuportável retorna, nós não hesitamos em mudar Lisa de lugar. Lisa vai, assim, de manhã à escola especializada mais próxima, que outras crianças do Courtil frequentam. Ela vai também, por uma dezena de dias, a cada dois meses, para um serviço de pedopsiquiatria. Ela participa de estadias externas à instituição durante os períodos de férias escolares. Quanto à escola, a situação se deteriorou, Lisa mudou de escola: esta se encontra mais distante do Courtil e Lisa passa lá o dia. Lisa, que é a mais nova do grupo do Courtil, se levanta primeiro, se prepara, pega o ônibus e passa seu dia pacificamente na escola quase toda a semana.

Nas quartas e a quintas-feiras, nós nos ocupamos dos trajetos de retorno.  Durante estes trajetos, Lisa é surpreendente. Ela conta histórias, se lembrando de pequenos acontecimentos de dias passados e também de acontecimentos mais antigos. Ela se torna falante, muito falante. A cada vez que ela avança em suas pequenas conversas, em que as palavras são frequentemente escamoteadas, ela demanda que se aprove com um “Sim, Lisa”. Ela repete, então sua frase e depois passa à seguinte. 
Deixando um lugar por outro, os significantes se colocam em circulação, se articulam entre eles, se pontuam, se fecham em pequenas frases, em unidades de significação. É Lisa agora que vai e vem. Um recorte geográfico se estabelece endossado por uma circulação do corpo que lhe permite se endereçar ao outro e fazer um laço social mínimo.

Lisa faz circular a palavra contando isto que se passa nos lugares onde ela circula. Ela pode se sustentar na fala de um outro, por exemplo: “O Sr Jean Marc disse que não se pode bater. Ela se serve de uma interdição proferida por um outro, em outro lugar, para regular por um tempo seu gozo.
Mas também, nós aprendemos a lhe falar sem lhe dizer não, simplesmente utilizando as palavras que não lhe dão acesso direto ao objeto. Eis um destes momentos:
- Lisa: “Véronique tem um gato, não é um gato bebê, é Titi, uma mamãe. Lisa vai à casa de Véronique para ver Titi?”
- Eu: “Talvez um dia” ou “Em breve, mas não hoje”.
- Lisa repete, então: “Talvez um dia...”
Estas pequenas palavras usadas por Lisa “mais tarde”, “em breve”, “agora mesmo”, “é suficiente”, “talvez”, mas também, “tchau”, “até logo”, nomeando o corte marcado pelo ir-e-vir de Lisa instalada em sua circulação. Lisa pode então se separar do objeto de sua demanda de satisfação imediata, este que é o mais apaziguador. A aquisição destas palavras no discurso de Lisa lhe permite também não mais engolir toda alimento.

A constituição de um objeto que é um duplo imaginário
Esta construção, esta posição de uma circulação regrada do corpo pela palavra se sustenta agora no objeto que a acompanha, que ela nomeia com um nome às vezes masculino, às vezes feminino. Não são mais suas bonecas ou bichos de pelúcia que choram ou gritam como outras vezes e que a ameaçam quando de repente lhe aparecem como vivos demais. Há alguns meses, é às vezes uma vara, sempre ao menos tão grande quanto ela, às vezes um casaco ou ainda uma bóia inflada pela metade. Ela os chama Victor, Marie... Eles se instalam ao lado dela ou circulam com ela.

Lisa construiu assim um corpo sustentado por um duplo imaginário que ela extrai a partir de um objeto da realidade. A vara sustenta o corpo, o casaco lhe dá um envelope. Sua marcha desarticulada como um fantoche, melhorou. Seu corpo se ergueu e refinou. Ela agora está vestida.

Publicado em Les Feuillets du Courtil, 29. Janeiro, 2008.

Tradução: Ana Martha Wilson Maia
Revisão: Elisa Alvarenga