Bernard
Seynhaeve
“Tento dizer que a arte está para além do simbólico. A arte é um saber fazer. Creio que há mais verdade no dizer da arte do que em qualquer blábláblá. E não se trata de pré-verbal, mas de um verbal na segunda potência”[2]
O corpo é do domínio do ter. Tem-se um corpo, não se é um corpo. Em alguns casos, a
percepção do corpo próprio como unidade imaginária separada do universo,
separada do outro, não foi conquistada ou foi mal conquistada. A relação com o
corpo fica então bizarra, o corpo é percebido como estranho, e até mesmo como
estrangeiro. O corpo pode então aparecer como um monte de órgãos, fragmentado,
com sensações e percepções desorganizadas e sem unidade[3]. É o
corpo sem borda do qual podem testemunhar alguns sujeitos autistas.
Eu guardarei uma lembrança indelével de meu primeiro encontro
com essa pequena jovem que eu chamarei de Émile. Ela tinha oito anos quando ela
me foi apresentada pelas enfermeiras do hospital dia onde ela devia passar os
primeiros anos de socialização. Foi ela que se dirigiu a mim com essa
familiaridade suspeita que encontramos, de tempos em tempos, em alguns desses
jovens sujeitos ditos “autistas”, me cumprimentando com um “Bom dia!”, como se
ela me conhecesse desde sempre.
Espantado com esse ímpeto em minha direção, eu
lhe respondi perguntando como é que ela
se chamava.
“Émilie”,
ela me diz, “eu sou autista”. Eu lhe perguntei então o que era ser autista! Ela
me convidou a me aproximar. Eu abaixei e ela me sussurrou no ouvido: “Eu faço cocô por todos os lugares e”, – associando
o gesto à palavra - , “eu o passo por todos os lugares nas paredes”.
Nós havíamos
acolhido essa criança no Courtil, ela ficou por uma dezena de anos em nossa
instituição. Essa menina tinha uma
grande dificuldade constituir
um eu (moi): um eu, quer dizer, uma imagem de seu corpo. De fato, ela não tinha
corpo. Me parece que ela era muito mais um organismo, ou um saco de órgãos:
assim teria ela o direito de se interrogar sobre a substância que escapava de
seu corpo. Seria uma extremidade dela mesma? Obviamente, não era um dejeto. Ela
conservava, portanto, preciosamente, seus excrementos.
Do volume à superfície
Ela devia ter uma imagem bizarra de seu corpo. O
que ela via no espelho? De fato, ela não devia ter um eu como você e eu[4]: um eu
que se mede tendo como referência uma imagem idealizada que fazemos de modo
narcísico.
Émile tinha dificuldade em representar seu
corpo. Para constituir a imagem de seu corpo, é preciso passar do volume à superfície:
ora, Émilie não
conseguia fazer isso espontaneamente. O que ela veio, portanto, fazer em nossa
instituição, foi encontrar meios para se fazer um corpo, e realizar isso de uma
maneira distinta daquela de um protocolo que teria consistido, por exemplo, em
lhe ensinar o asseio, recompensando-a quando ela estivesse limpa. Nunca
exigimos dela que cedesse esse objeto anal que ela guardava conscienciosamente.
Nós não quisemos praticar esse método
educativo, nós escolhemos uma via inteiramente distinta,
centrada no objeto. Nós acolhemos seu sintoma.
O começo não foi fácil para o pessoal da
instituição. Durante os primeiros meses, nós encontrávamos os excrementos dentro de
sacos plásticos que ela estocava debaixo de sua cama.
O que é que aconteceu então para que se produzisse
um fenômeno novo?
Talvez alguém
tenha colocado tinta e pincéis à sua
disposição. Assim, um dia me chamaram para ir ver seu
quarto, o que eu nunca faço. Mas a insistência era tal que eu me vi obrigado a
ir. Tinham algo para me mostrar.
Entrando no quarto, fiquei estupefato e
maravilhado diante de uma formidável
realização pictórica.
Era incrível. Émilie tinha arrancado, de seu caderno de colorir, a silhueta que
se dispõe à direita de seu modelo e que espera ser colorida. Ela tinha colado a
página para colorir na parede e se colocou a trabalho. Ela percebeu que o
joelho do personagem sentado podia igualmente fazer função de lóbulo da orelha de um outro
personagem. Tinha assim deidido pintar esse personagem que era evidentemente
muito maior do que a página. Seu trabalho ultrapassava sensivelmente as bordas
da folha colada na parede. Resultava disso, segundo esse princípio, um magnífico
afresco de personagens emaranhados que recobria uma grande parte das paredes de
seu quarto, na sua altura, incluindo a janela. Seu trabalho ainda não estava
concluído quando eu fui chamado. Penso poder dizer que se tratava de uma obra
de arte. Em todo caso, para mim. Não necessariamente para ela, pois a questão
estética provavelmente não contava para ela, o que lhe importava era a precisão
do traço.
Onde começavam
os corpos? Onde eles terminavam? Tal era a questão que tomava o sujeito.
Aconteceu algo novo para ela, quando ela havia
feito esse deslocamento consistindo em passar de três para duas dimensões, em
fazer o salto do volume para a superfície passar dos excrementos no saco plástico
para a superfície, para a imagem do corpo. Era um avanço formidável. Um passo de gigante.
O trabalho de Émilie era rigoroso. Ela estava
obcecada pela questão dos limites do corpo e de sua representação. Ela nos
interrogava constantemente e com insistência sobre as múltiplas dimensões do
corpo, sobre seu movimento..., o modo pelo qual ele ocupava o espaço da folha.
A borda do corpo
Assim, ela fazia, por exemplo, enormes esforços
para tentar pintar a cor da pele. A cor da pele é uma mistura precisa de
diversas cores. Ela perguntava: “Por
que você diz que é o capitão Haddock nessa imagem aqui e
que é também
o capitão Haddock naquela imagem lá?”
Ela não podia subjetivar a história de Tintin e do capitão Haddock, ela não
podia conceber que para passar da gravura A para a gravura B era necessário
construir um cenário que necessitava que o capitão Haddock girasse um quarto de
volta. Aliás, a estória de Tintin não lhe interessava. O que lhe interessava
era o traço que separa o corpo do espaço no qual ele evolui. Ela perguntava: “Porque
o homem é maior do que a casa?” Ela nos indicava dessa maneira que ela mantinha
essa grande dificuldade para representar a profundidade, a espessura, o volume
do corpo. Uma praticante consultava então com ela uma enciclopédia
de história da arte e lhe mostrava as pinturas dos pintores primitivos
italianos nos quais os personagens mais eminentes, Deus, os santos, tinham um
tamanho maior que o dos outros personagens.
Ela interrogava também
a simetria dos corpos - negócio estranho esse da simetria dos corpos – e
conseguia representá-los dobrando em dois, numa folha de papel que acabara de
ser pintada, uma metade de rosto de rosto em gouache, e permitia obter uma
imagem de uma simetria bizarra.
Ela começou
então a se interessar pelas máscaras, passo suplementar que ela franqueava
nessas pesquisas sobre o envoltório
corporal.
Mas ela permanecia sempre insatisfeita e com
dificuldades.
Ela se aplicava num esforço constante em querer
obstinadamente traçar desenhar o traço perfeito da borda do corpo. E pouco a
pouco, ela se aperfeiçoava. Um dia, um
praticante lhe propôs se inscrever numa academia de belas artes para lhe
permitir encontrar uma resposta sobre a arte de pintar a cor da pele. A pele “branca”
não é de forma alguma rosa! É preciso usar o amarelo de Nápoles, o ocre amarelo
e um pouquinho do vermelho indiano, etc...
Mais tarde, lhe proporão expor suas pinturas.
Ela percebeu que queriam comprar suas produções. Ela começou então a comercializar seus
quadros e a construir uma forma de laço social.
Émilie permaneceu uma dezena de anos no Courtil.
A foraclusão do Ego, - para retomar aqui a tese de J.-A. Miller, em
Montpellier, em 2011 – exigiu dela uma invenção. A pintura é seu Nome-do-Pai. Para se
fazer um corpo, tratava-se para ela de fazer acontecimento de corpo daquilo que
escapava dele, de fazer sintoma de um traço sobre o corpo, de bordejar o furo
do corpo. Nós nos prestamos à sua invenção. Depois ela foi embora. Pelo que eu
sei, ela continua sempre esse trabalho com o mesmo rigor, e continua a expor e
a vender suas obras.
Essa criança nos ensinou sobre a clínica da
borda a partir do deslocamento metonímico do objeto anal em direção à pintura.
O acontecimento de corpo – pois é bem de um acontecimento de corpo que se trata
– consistindo em ceder o excremento nos consultórios, se acompanhou de uma cessão
de gozo e inaugurou para ela uma nova era na qual ela faz uso de seus pincéis
para traçar com rigor a borda do furo deixada pela cessão do objeto[5].
Tradução:
Cristina Drummond
Revisão:
Tânia Abreu
[1] Bernard Seynhaeve é psicanalista em
Lille e diretor do Courtil. Ele é membro da Escola da Causa Freudiana. Exposição
apresentada nas 42as jornadas da Escola da Causa Freudiana, “Autismo e psicanálise”,
nos dias 6 e 7 de outubro de 2012 em Paris.
[2] Lacan J., O Seminário, livro
24, L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977), aula de
18 de janeiro de 1977, inédito.
[3] Marga Auré, « Le corps du
schizophrène : quelques références théoriques », site da ECF.
[4]
Reportar-se ao comentário de J-A Miller no Segundo Forum de UFORCA em
Montpellier, em maio de 2011.
[5] Ler a esse respeito, “Les sujets
autistes, leurs objetes et leur corps”, texto proposto por Éric Laurent na
conversação clínica, A l’écoute des autistes, Des concepts et des cas.
Paris, 30-06-2012.
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