segunda-feira, 23 de março de 2015

A AFFINITY THERAPY PARA O AUTISTA?


 A Affinity Therapy inventada por Ron Suskind[1] e Dan Griffin em 2014 possui várias propriedades notáveis que incitaram o coletivo dos praticantes com autistas a descobri-la na França e na Europa, sustentando a organização na Universidade de Rennes 2, nos dias 5 e 6 de março de 2015, do primeiro Colóquio Universitário consagrado a ela.  Universitários e praticantes vindos do mundo inteiro puderam trocar ideias com Ron Suskind, jornalista americano de renome, ganhador do Prêmio Pulitzer em 1995, assim como com seu filho Owen e Dan Griffin, na presença de uma audiência para a qual foi necessária a abertura ao público de um segundo anfiteatro. Além disso, cinco associações de pais de crianças autistas vieram testemunhar de seu apreço por uma abordagem plural do autismo, justificada pelas incertezas atuais da ciência: a etiologia do autismo permanece desconhecida, sua definição flutua, os métodos de tratamento, mesmo quando são recomendados pela HAS (Alta autoridade de saúde), não conseguem ser validados cientificamente.

A Affinity Therapy coloca de início o acento sobre uma escolha criativa do sujeito, incitando-o a desenvolver sua paixão: os filmes de Walt Disney para Owen Suskind, que o exprimiu longamente, as plantas carnívoras para Alan Ripaud, que testemunhou sobre isso, Kirikou e a feiticeira e depois Minecraft para Théo, cuja mãe, Valérie Gay, relatou seu percurso, etc.

Essa terapia parte de uma decisão e de um saber do autista — e nisso, ela se opõe aos métodos atualmente preconizados que colocam o acento sobre as incapacidades a serem preenchidas com técnicas de aprendizagem.

Como a paixão de um autista é sempre singular, a consequência é que essa terapia não pode ser feita senão caso a caso. Ela tem que ser inventada com cada um. Nisso ela se diferencia nitidamente dos métodos atuais preconizados como sendo válidos para todos através de algumas adaptações mínimas.

Esses dois princípios principais, a abordagem caso a caso e o apoio sobre uma invenção do sujeito, convergem de maneira notável com a abordagem psicanalítica que orienta o coletivo, daí o nosso entusiasmo em nos tornarmos parceiros de um tal colóquio — o primeiro organizado numa Universidade sobre a Affinity Therapy.

Por ocasião deste, nós descobrimos uma terceira propriedade notável da Affinity Therapy. Ali onde não esperávamos: em alguns blogs onde se expressou um ódio cego contra o próprio campo do colóquio. Merece ser sublinhado que ninguém ali critica a própria Affinity Therapy. No quadro atual das disputas concernindo o autismo, é notável que esta seja uma unanimidade. Cada um reconhece os méritos da  Affinity Therapy ; a maioria chega mesmo a dizer que já a pratica. O que é denunciado diria respeito à aproximação que é feita entre Affinity Therapy e psicanálise. É verdade que esta aproximação pode parecer totalmente opaca àqueles que escrevem nos blogs, já que eles testemunham que sua concepção da psicanálise é aquela difundida por um filme de propaganda que a caricaturiza. Sobre esta, ela se encontra no filme artificialmente unificada pelos preconceitos da diretora, refletidos por sua montagem, de modo que a diversidade das correntes que a atravessam é totalmente desconhecida.

A Affinity Therapy « não é nada de novo », dizem eles nos blogs, e a prova que isso não tem nada a ver com a psicanálise é que a Affinity Therapy « nós sempre a fizemos». Entretanto, aquela que eles acreditavam fazer não é aquela que nós preconizamos. Ela não consiste em adaptar o método de aprendizagem utilizando como reforço tal ou tal afinidade; ela implica a invenção de um tratamento novo para cada um: com desenhos animados para um, com carrilhões para o outro, com os trens para um terceiro, às vezes com um animal, etc. A Affinity Therapy não é um planejamento de percursos já balizados, ela é a criação de um percurso sob medida para cada autista. No método «ABA», o mais advogado pelos detratores do colóquio, as invenções da criança são apreendidas como « obsessões », que obstaculizam a aprendizagem, elas são comparadas a comportamentos de adição, muitas vezes tratadas como manipulações, elas devem claramente ser combatidas. Como é que os apoiadores do método ABA teriam tratado a paixão de Owen pelos filmes de Walt Disney ?

Por outro lado, desde os anos 70, a « prática feita por vários », que representa o cotidiano do trabalho de numerosas instituições orientadas pelo ensino de Lacan, e que é colocada em prática por interventores de formações diversas (psicólogos, educadores, professores das escolas, fonoaudiólogos, psicomotricistas, artistas, etc.) tem como princípio principal o de se fazer parceiro da criança, o que implica uma individualização radical do tratamento, e o que situa sua fonte principal nas invenções da criança autista, ainda que elas sejam mínimas. Ninguém por exemplo lhe ensinou a sacudir um barbante diante de seus olhos, se ele o faz tão frequentemente é, supomos, porque esse achado possui para ele uma função importante. Os autistas de alto nível confirmam isto em seus escritos. Fazer-se parceiro da criança é o princípio que orienta a prática do «Courtil» sobre o qual testemunha o filme de Mariana Otero — A céu aberto — que foi projetado durante o Colóquio.

Em seus fundamentos, os métodos psicodinâmicos (Affinity Therapy, psicanálise, terapia pelo jogo…) se opõem radicalmente aos métodos de aprendizagem; os primeiros visam construir o sujeito se apoiando sobre suas invenções, os segundos buscam formatar os comportamentos tomando o saber do educador como princípio motor.

Certamente, desde então, a oposição se atenuou um pouco. As paixões do autista tomam um lugar nas atividades de aprendizagem sendo utilizadas como reforçadores das tarefas; por outro lado os psicanalistas introduzem em sua prática técnicas iniciadas pelos cognitivistas, notadamente estruturando o espaço e o tempo. O fosso se enche parcialmente, mas ainda é difícil de ser transposto.

É, no entanto, incontestável que para além dos debates apaixonados, talvez até mesmo graças a eles, se produz uma evolução e até mesmo alguns esboços de convergências na abordagem atual do autismo, já que como conclusão do Colóquio algumas afirmações de um dos especialistas principais da abordagem cognitivista do autismo, o professor Laurent Mottron, pesquisador canadense, foram retomadas palavra por palavra. Suas conclusões se fundam em pesquisas totalmente estrangeiras à abordagem psicodinâmica, mas elas são apoiadas na experiência dos autistas de alto nível.

« É uma anarquia, os packages », ele afirma. Ele considera que para cada autista convém proceder a um encaminhamento em função de suas capacidades especiais. Ele constata, como tantos outros, que é a partir dos interesses específicos, o que chamamos de afinidades, que se desenvolvem as competências cognitivas. « Quando se passa um tempo enorme com alguma coisa, ele sublinha, passa-se menos tempo  com outra coisa. Isso foi considerado como uma espécie de falha do autista: falta de generalização, capacidades inúteis, etc. De fato, ele insiste, é preciso tomar isto como um fato: « é assim que funciona o autismo ». Ele advoga como Ron Suskind, Dan Griffin e nós mesmos em favor de se apoiar sobre o interesse específico a fim de desenvolver as capacidades. Ele incita dessa maneira a se respeitar a alteridade do autista.

Convidamos a tomar conhecimento dos desenvolvimentos que virão da Affinity Therapy e dos métodos psicodinâmicos de tratamento do autismo consultando os seguintes sites, o de Ron Suskind: « Lifeanimated.net », e o site universitário:          «affinitytherapy.sciencesconf.org »

Coletivo dos praticantes com autistas

 Post Scriptum: Sobre algumas das falsas ideias mais difundidas sobre a questão do autismo:
— A prática institucional de tratamento dos autistas orientada pelo ensino de Lacan não usa nem o packing, nem a piscina terapêutica, nem a violência. Sobre esse último ponto, não se pode dizer o mesmo do método ABA — contra o qual se insurgem vários autistas de alto nível. A justiça acaba de confirmar que os maltratos — denunciados por Médiapart no local oficial francês da ABA —, não são difamações (Dufau S. Autisme : Vinca Rivière e a Associação « Pas à Pas » perdem seu processo contra Mediapart. http://goo.gl/cEbNig)

Se o coletivo dos praticantes e dos organizadores do Colóquio advogassem a favor de uma culpabilização dos pais, é pouco provável que cinco associações de pais de crianças autistas, no entanto bem informados sobre as querelas atuais, (uma delas é presidida por um professor de medicina), tivessem intervindo no Colóquio, para relatar experiências comprovadoras da Affinity Therapy e para preconizar uma aproximação plural do autismo não excluindo os modelos psicodinâmicos.

— As raras referências à « mãe crocodilo » feitas por Lacan não concernem de modo algum ao autismo. As teses de Bettelheim relativas à implicação dos pais na etiologia do autismo nunca foram unanimidade entre os psicanalistas: desde 1965, Tustin se opunha a isso fortemente e ela não deixou de fazê-lo. Sua influência no que concerne à abordagem psicanalítica do autismo não foi menor do que aquela de Bettelheim.

— Nós consideramos o autismo como um funcionamento subjetivo específico e não como uma psicose. O professor Jean-Claude Maleval explica o porquê em seus trabalhos.
— Não é evidente para todos que a prática psicanalítica não utiliza a convulsoterapia (às vezes prescrita pela psiquiatria), e não advoga a favor dos choques elétricos. Por outro lado, a sra. Vinca Rivière, apoiadora do método ABA, vangloria as virtudes dessas últimos; (Dufau S. Autismo: uma correspondência embaraçosa para um centro sempre citado como exemplo, Médiapart, 3 de abril de 2012. www. mediapart.fr )

— Parece ainda necessário precisar que a psicanálise não se confunde com a psiquiatria. Há meio século a psiquiatria francesa tinha uma tendência predominantemente psicanalítica; hoje as neurociências constituem sua referência privilegiada. A psicanálise leva ao diálogo com o paciente: as neurociências levam a exames de seu sistema nervoso. Observadores independentes sustentam que a perda da referência psicanalítica na psiquiatria contribuiu enormemente para sua desumanização. (Coupechoux P. Um mundo de loucos. Como nossa sociedade maltrata seus doentes mentais. Seuil. Paris. 2006)

— « A » psicanálise não existe: ela é atravessada por correntes diversas, estas, no que diz respeito ao autismo, sustentam às vezes teses contraditórias. Isso também é verdade no que diz respeito às diversas terapias comportamentais e cognitivo-comportamentais (todas não advogam a favor dos eletrochoques). Isso é ainda verdade para as recomendações da Alta Autoridade de Saúde cujos preconizações científicas entram às vezes em conflito com suas próprias recomendações éticas:  ela incita a levar em conta « os gostos, os ritmos, as capacidades » e mesmo « os desejos » próprios da criança autista! E, no entanto, ela não desaconselha o método ABA!

— A Alta Autoridade de Saúde (HAS) em 2012 recomenda, para tratar das crianças autistas, ABA, TEACCH e Denver, não em nome de uma ciência triunfal, mas na falta de algo melhor, já que ela constata ao mesmo tempo que nenhum desses métodos é validado cientificamente (não é mais que uma « pretensão de eficácia », ou um « frágil nível de prova »). A HAS observa que todos esses métodos conhecem mais fracassos do que sucessos. Isso deveria incitar à modéstia das preconizações.
— A HAS não recusou a psicanálise e a psicoterapia institucional para o tratamento das crianças autistas: ela não tomou partido. Essa é a diferença entre a qualificação « não consensual », que lhes é dada, e a não recomendação. A se notar que associações que, em nome da ciência, fazem a caça aos métodos não consensuais, ao mesmo tempo não hesitam em sustentar formações em métodos não recomendados, tais como Makaton ou PECS, sem o menor embaraço.

— A qualificação « não consensual » concernindo à psicanálise e à psicoterapia institucional se justifica pela ausência de estudos respondendo à metodologia da HAS (que recusa aquela advogada pelos psicanalistas). Ora, um estudo recente do INSERM (2014), favorável aos tratamentos psicodinâmicos, vem agora preencher essa lacuna: Thurin J-M. Thurin M. Cohen D. Falissard B. Abordagens psicoterapeuticas do autismo. Resultados preliminares a partir de 50 estudos intensivos de caso. Neuropsiquiatria da infância e da adolescências 62 (2014) 102-118.

Seria apreciado que os desacordos em relação ao que precede sejam expressos por argumentações fundamentadas e não pelas calúnias habituais que de início buscam eliminar a troca.

Tradução: Cristina Drummond.



[1] Suskind, R, Life Animated : A story of Sidekicks, Heroes and Autism. Kingswell. California. 2014.

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