quinta-feira, 19 de março de 2015

Carta aberta a Myriam Perrin em seguida ao Colóquio “Affinity therapy”


 11 de março de 2015 – Por Valérie Gay-Corajoud

Cara Myriam Perrin,

Há pouco instalada no trem que me traz de volta a Palavas-les-Flots, indo ao encontro de meu filho, experimento a necessidade de escrever-lhe para lhe falar de tudo que pude sentir a propósito do Colóquio sobre a Affinity therapy, antes, durante e agora, algumas horas depois deste final emocionante. Este dedo de Deus indo com delicadeza ao encontro do de Mickey, e daquele de todas as crianças. Não é pouco como simbólico!

Estou particularmente feliz, e orgulhosa também, de fazer parte deste movimento que começa. Eu o sinto fortemente, o futuro se abre luminoso para as crianças autistas, para as crianças diferentes. A era da inquisição comportamental está no ponto de prestar suas contas e não me deterei no fato que tenha sido preciso todo esse tempo para miná-la!

Posso e quero testemunhar da travessia do deserto que foram estes anos junto ao meu filho autista, não somente na sua solidão, mas pior ainda, com esse demônio negro sobre nossas cabeças, procurando se alimentar sem vergonha do meu cansaço, das minhas dúvidas, dos meus medos, afim de transformar meu filho no que ele não é, e até me obrigar a fazer parte deste desastre.

Eu não cedi, pois eu tinha o sentimento de ter razão e também a certeza de que eles estavam errados.

O comportamentalismo, é exatamente o que o termo genérico anuncia e eu não compreendo que isso não tenha sido suficiente para alimentar a desconfiança dos pais e do público.

Será que sou ingênua? É isso mesmo que eles querem? Me recuso a acreditar.

Como tentei explicar rapidamente durante a discussão que se seguiu a meu testemunho, sempre dei prioridade a Théo. Não ao “lugar de Théo na sociedade”, não mais que à idéia que eu poderia me fazer de Théo e ainda menos a imagem que a pressão social tenta nos fazer ter de nossos filhos.

Não, o que me importava mais que tudo, era compreender quem era realmente Théo, para além do seu mutismo, de seus gritos, de seus choros, para além do seu fechamento, de suas automutilações, de sua linguagem reinventada.

Quem é ele profundamente, através de seus sonhos, seus sentimentos, sua intimidade, seu lugar. Só ele? E como ajudá-lo a se sentir à vontade para florescer e dar um sentido à sua vida?

Por ocasião da emergência do autismo de Théo, por ocasião deste “desabamento” tão particular que marca para muitos a entrada em um mundo diferente, que parece erigir um muro, ou ao menos uma porta sólida entre a “normalidade” e eles... Naveguei na Net para encontrar resposta e apoio.

E o que eu li me assustou.

Quanto mais eu procurava ajuda, mais eu entrava na solidão.

Nada do que me diziam podia me convir pois nada me falava de meu filho.

Nos blogs eu só encontrava receitas ao longo das páginas: “como mantê-lo limpo”, “como alimentá-lo, “como fazê-lo dormir”, “como obrigá-lo”! E da mesma forma, e isso não parou de me chocar, falava-se mais dos pais que das crianças: “como viver com esse peso”, “como suportar”, “como se virar”, “como voltar a ser mestre em sua casa, de alguma forma”.

Raramente, ou jamais, li interrogações sobre o sentimento profundo da criança, como se ele não estivesse lá, como se isso, no fundo, não contasse realmente.

Quando eu tentava falar dos nossos filhos, do respeito que nós deveríamos ter em relação a esse retraimento que traduzia fatalmente um mal-estar, uma dor, ou ao menos uma fragilidade, me respondiam que dessa maneira eu não chegaria a nada com meu filho além de alimentar sua psicose e levá-lo ao suicídio muito rápido.

Vocês podem imaginar o impacto e as feridas que isso pôde produzir em mim.

O que é terrível é que essas respostas mordazes vinham tanto dos pais quanto dos “profissionais comportamentalistas”.

Eu certamente percebia que por trás de tudo isso uma estrutura piramidal, quase como uma seita, organizava o controle do comportamentalismo.

Os propósitos eram muito parecidos para emergir realmente de cada uma das pessoas às quais eu me dirigia.

Eu sentia que não havia mais lugar para uma outra interpretação, para uma outra proposição.

Quanto mais eu caminhava, mais eu tinha o sentimento de ser a intrusa, a perigosa, a que era preciso calar, ou melhor, fazer desaparecer.

Estávamos longe da ajuda que eu viera buscar no início!

Criei então meu próprio fórum que chamei de “bistrô da esquina”, com a esperança de acalmar as paixões, propondo aos pais sentarem-se tranquilamente e de falarem, compartilharem, debaterem, buscarem juntos.

Ainda ingênua, decididamente. Demorei para compreender!

Na verdade, eu chegava tarde demais.

Alguns anos mais cedo, talvez minha voz tivesse podido ser escutada da mesma forma que os outros, mas os anos que viram a emergência do autismo de Théo já estavam nas mãos da ABA e seus soldados haviam invadido a Net, muitas associações e igualmente certas instituições... Até o centro de diagnóstico da minha região que nos fez viver um pesadelo suplementar.

Disseram-me que eu era egoísta, atrevida, pretensiosa etc. Que não era questão de empatia com “os autistas”, que isso não tinha nenhum sentido pois eles não seriam mais do que uma página em branco para preencher. Ameaçaram denunciar-me (a quem?), retirar-me meu filho (com que autoridade?)

Amordaçaram-me retirando minhas intervenções, fazendo desaparecer meu fórum, deformando meus propósitos.

Enfim, não é a vocês que vou ensinar o poder da má fé e os estragos que ela ocasiona.

Eu estava identificada, só com meu filho que nos gritava, dia após dia, que ele estava mal e que precisava de ajuda para ser. Apenas ser.

Então eu encerrei a página da Net e de certa forma me fechei com meu filho, preferindo entrar com ele em seu mundo do que arriscar-me a deixar que a “loucura” exterior viesse envenená-lo e recusar sua parte de vida própria. Sua identidade.

Com certeza tive dúvidas! Sem cessar!

Será que eu fazia certo? Será que eu tinha razão de me obstinar nessa via? E se eu apenas o isolasse mais profundamente em seu mundo e eu junto, fora do movimento geral, fora da sociedade?

Mas o apaziguamento de Théo, seu sorriso, depois sua linguagem reinventada e seu bem estar foram os pontos de ancoragem nos quais encontrei a força para continuar neste caminho.

Hoje tenho a prova do bem fundado da minha decisão! Théo é uma criança que floresceu, feliz, que tem projetos de vida que correspondem a SEUS sonhos! Ele é Ele... Inteiramente Ele e sobretudo ele se ama e sabe qual é seu valor e sua importância.

Porque lhes envio esta mensagem um pouco rascunho, um pouco confusa?

Primeiro para agradecer-lhes por serem um baluarte no mundo da loucura comportamental   e por terem organizado este Colóquio.

Não obedeço nenhuma linha psychanalítica. Não segui nenhuma formação nesse sentido e nunca experimentei a necessidade de fazer uma análise.

Tenho uma formação de musicista e sou mãe.

Mas nunca me senti agredida ou colocada em perigo pelos psicoterapeutas que encontrei para Théo. Ao contrário dos comportamentalistas que me aterrorizaram, e depois nos isolaram.

Nisso, entre outras coisas, esses dois dias em Rennes foram de uma importância capital para mim pois eles nos tiraram, minha família e eu, do isolamento, teorizando nossa abordagem.

Eu tinha meu lugar nesse Colóquio, como todos os pais, as pessoas autistas, as associações, e todos os que queriam que as coisas evoluíssem mais humanamente.

Em seguida, tenho consciência desta guerra destruidora que se desenvolve desde o começo entre os comportamentalistas e os psicanalistas e fico assustada cada vez por seus métodos empregados para deformar a realidade.

Tenho também consciência da dificuldade que vocês têm de se defenderem contra esses ataques pois cada um de seus propósitos são deformados, invertidos, devolvidos e levados ao público como verdades incontornáveis!

Práticas que eu reprovo, mais que tudo.

Penso que posso, como mãe, participar no restabelecimento de uma parte da verdade. E da mesma forma que era importante, durante o Colóquio, me escutar, assim como todos os outros pais e associações, posso ainda hoje unir minha voz à de vocês para dizer e provar que, longe do comportamentalismo, pode-se ajudar uma criança autista a encontrar seu lugar no mundo.

Durante minha discussão com Ron Suskind, este último me tomou nos braços e me disse baixinho:

Théo e Owen vão mudar as coisas”.
Sim, é isso...

Que nossos filhos, felizes, vivos, cheios de seus futuros sejam nossas tochas.

Um prazer revê-la um dia e debater com você e sua equipe sobre o valor das afinidades particulares.

Valérie Gay


Carta difundida com o acordo da senhora Myriam Perrin, mestre de conferências em psicopatologia, responsável pelo Grupo de Pesquisa Autismo e organizadora do Colóquio Affinity Therapy que aconteceu em Rennes nos dias 5 e 6 de março de 2015.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário